O ex-presidente Michel Temer disse que ficou surpreso e honrado com o convite do presidente Jair Bolsonaro para que coordenasse a ajuda humanitária do Brasil ao Líbano. Temer acredita que a missão ajudará a melhorar a imagem internacional do País. Em entrevista ao Estadão, ele disse que o convite representa uma mudança na política externa do governo Bolsonaro, que estaria finalmente caminhando para uma diplomacia multilateral.
Como o sr. recebeu o convite do presidente Bolsonaro para coordenar a missão brasileira?
Fiquei surpreendido, mas muito honrado. Tenho relações familiares com o Líbano. Meus pais nasceram e cresceram lá, casaram-se no Líbano, tiveram os três primeiros filhos lá e mais cinco depois. Eu sou o último. Portanto, tenho uma ligação umbilical com o país. Quando estive duas vezes lá, sempre fui muito bem recebido, como presidente da Câmara dos Deputados e como vice-presidente. No domingo (9), o presidente Bolsonaro fez o anúncio na reunião com os presidentes Donald Trump (EUA) e Emmanuel Macron (França). O pessoal que ouviu me conhece. Então, recebi entre surpreendido, honrado e emocionado em face das minhas origens.
O sr. tem contatos com sua família libanesa?
Fui visitar a terra em que meus pais nasceram, uma cidade pequena nas montanhas. No dia em que cheguei, quando era vice-presidente, inauguraram uma avenida modesta na cidade com o meu nome. Tenho primos nessa cidade e em Trípoli (80 km de Beirute). Não falo com eles mensalmente, mas mantenho contato.
Os libaneses querem apoio econômico e investimentos. Até onde vai a margem para o sr. tratar disso?
Posso dizer que, além das 6 toneladas (de mantimentos) no avião e das 4 mil toneladas de arroz por via marítima, em todo o Brasil tem gente querendo contribuir. Além daquilo que está chegando, poderá ir um novo carregamento. O outro ponto é que, como tenho boas relações com as autoridades, vou ver se converso um pouco sobre a possibilidade de o Brasil ajudar diplomaticamente na intermediação de acordos. Está muito tumultuada a política lá. Brasil e França são os que mais têm vínculos com o Líbano e talvez pudessem ajudar no diálogo.
O sr. e o presidente Bolsonaro parecem mais próximos. Como está a relação de vocês?
O presidente Bolsonaro nunca criticou o meu governo, pelo contrário. Em várias oportunidades, eu o via dizendo: 'Se não fosse o Temer ter feito a reforma trabalhista, ter enfrentado a previdência'. Então, ele sempre fez referências elogiosas ao meu governo. Segundo ponto: não tenho tanto contato com ele. Tive uns três contatos ao longo do tempo. Ele deve ter ouvido entrevistas em que dou palpites. Digo: 'Olha, aquela coisa de falar na saída (do Alvorada) não é boa, porque é a palavra do presidente faz a pauta do dia'. Creio que, às vezes, ele possa ter levado isso em conta. Mas é um contato cordial, tanto que ele me convidou. Aliás, é uma coisa muito típica nos EUA. Não é incomum que presidentes peçam para ex-presidentes realizarem missões humanitárias.
Em entrevistas, o sr. sempre evitou fazer críticas a Bolsonaro e adotou um tom diplomático.
Tenho como método fazer observações com cautela. Ex-presidentes, ao meu modo de ver, devem ser discretos com relação ao presidente. Se não você não ajuda o País. Eu faço observações, críticas, muitas vezes, mas a título de colaboração, não de oposição.
O sr. acredita que Bolsonaro mudou um pouco sua posição com relação ao início do governo? Esse convite para o sr. é uma sinalização nesse sentido?
Pode ter sido. Certamente, deve ter passado por ele a ideia de que fui um ex-presidente que teve boa relação com o Congresso, com o Judiciário e sou descendente de libaneses.
Como o sr. avalia a política externa do governo?
O gesto do presidente Bolsonaro designando um ex-presidente e dando ajuda humanitária ao Líbano é uma mudança na política externa, convenhamos. Especialmente voltada para um país árabe. Segundo ponto: eu sempre sustentei a necessidade do multilateralismo. Precisamos nos dar bem com todos os países. Veja que nossos principais parceiros são China e EUA. Eu fazia na ONU aqueles discursos de abertura (da Assembleia-Geral) e sempre enfatizava a ideia do multilateralismo, nunca do isolacionismo. Tenho a impressão de que o presidente Bolsonaro está começando a trilhar esse caminho.
O sr. acredita que essa ação no Líbano melhora a imagem externa do Brasil?
Acho que contribui muito. Mas é preciso que o governo libanês esteja de acordo com isso, para fazermos essa intermediação. É um mero oferecimento, nada mais do que isso. O Brasil tem de descendentes o dobro de habitantes do Líbano. Então, temos toda a razão para imaginar um Líbano pacificado. Se pudermos colaborar com isso, muito bem. Teria um efeito externo positivo.
Como recebeu a decisão do juiz Marcelo Bretas, que o liberou para a viagem?
Eu tinha certeza que ele autorizaria imediatamente, como autorizou. Nas vezes anteriores, fui convidado para falar em Oxford. Ele negou em um primeiro momento, mas o tribunal deu autorização. Depois, fui falar em Salamanca e em Madri. Ele também negou, mas o tribunal autorizou. Quando vou, falo bem do Brasil, divulgo o país. Nessa hipótese, como se tratava de uma situação humanitária e politicamente importante, ele deferiu imediatamente.
Cometário da notícia
O ex-presidente Michel Temer (MDB), que em razão de processos judiciais precisou de autorização da Justiça para viajar ao Líbano, tem sido usado como uma nova estratégia do presidente Jair Bolsonaro (Sem Partido) para ampliar apoio político no Congresso Nacional.
Temer, como se sabe, já foi presidente da Câmara Federal e um dos mais influentes líderes do Centrão. O MDB, hoje afastado formalmente do Centrão e com restrições a Bolsonaro, é um partido históricamente dividido em diversas alas. E Temer excerce forte influencia dentro do partido.
A aproximação de Bolsonaro com Michel Temer revela o esforço do presidente em construir uma base mais consistente no Congresso, além de costurar apoio eleitoral, pois é no processo eleitoral de 2022 que está o foco de Bolsonaro neste momento.
Aliás, o Brasil vive um momento político delicado, com o presidente focado nas eleições, o governo dividido entre militares que defendem o aumento dos gastos públicos com fins eleitorais e a equipe econômica de Paulo Guedes, que defende mais austeridade e que já está se desmantelando pela visível falta de apoio do presidente. E nessa queda de braço em que o pêndulo pende para o populismo político, tem ainda a turma do Centrão cobrando a fatura e exigindo mais gastos.
É o Brasil caminhando para o caos econômico e social no pós-pandemia.