Brasília, por três dias, não será apenas a capital do poder formal, a cidade de linhas retas e monumentos imponentes. Será, sobretudo, o epicentro de uma força represada, um oceano de vozes que voltou a encontrar seu rumo. O Centro Internacional de Convenções do Brasil transforma-se num imenso organismo vivo, pulsante, habitado por quatro mil mulheres. São delegadas, convidadas, observadoras, artesãs, ativistas. Um mosaico de rostos, sotaques e histórias, unidas por um propósito comum: tecer, fio a fio, o futuro das políticas de gênero no país. A 5ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres (5ª CNPM) não é apenas um evento; é um ato político, um rito de passagem, a celebração de um reencontro há muito esperado.
Após quase uma década de vácuo, de um silêncio imposto que ecoou nos quatro cantos da nação, a conferência ressurgiu com o tema "Mais Democracia, Mais Igualdade, Mais Conquistas para Todas". Um lema que é, em si, um diagnóstico e uma promessa. O hiato, iniciado em 2016, não foi um mero acaso do calendário. Foi o sintoma de um projeto que, deliberadamente, buscou desmontar as estruturas de participação social que haviam se tornado a espinha dorsal da construção de políticas públicas no Brasil.
Orquestrando essa retomada, uma figura cuja trajetória se confunde com a própria história das políticas sociais no país: a ministra das Mulheres, Márcia Lopes. Vê-la em ação é observar uma artesã política em seu elemento. Com uma serenidade que contrasta com a urgência dos temas que maneja, ela articula ideias, conecta pessoas e traduz demandas complexas em caminhos possíveis. Sua presença na esplanada não é um acaso, mas o resultado de uma vida dedicada àquilo que define como a "construção do coletivo". É essa a voz que, em entrevista à Danielle Almeida, da Agência Brasil, nos ajuda a decifrar o significado profundo deste momento histórico e os desafios colossais que se impõem.
O perfil da maestrina: quem é Márcia Lopes?
Para entender a importância da 5ª Conferência, é preciso entender quem é a mulher que a coordena. Márcia Lopes não é uma figura nova na cena política nacional, tampouco uma técnica alheia às asperezas da realidade brasileira. Sua história é profundamente enraizada no chão da assistência social, na militância e na gestão pública. Nascida em Londrina, no Paraná, formou-se assistente social, uma escolha profissional que viria a definir toda a sua carreira. Desde cedo, sua atuação esteve ligada aos movimentos sociais e à defesa dos direitos humanos.
Sua experiência na gestão pública é vasta. Antes de assumir o recriado Ministério das Mulheres no terceiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Márcia Lopes já havia deixado sua marca na Esplanada. Entre 2010 e 2011, foi Ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, sucedendo Patrus Ananias. Naquele período, esteve à frente de programas que se tornaram referência mundial no combate à pobreza, como o Bolsa Família e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), do qual foi uma das principais arquitetas e implementadoras como Secretária Nacional de Assistência Social.
Sua volta a um cargo ministerial, agora com o foco exclusivo nas mulheres, carrega um simbolismo potente. Representa a continuidade de um projeto político que vê na inclusão social e na redução das desigualdades a única via para um desenvolvimento genuíno. Márcia Lopes não é uma teórica de gabinete; é uma operária da política social, alguém que conhece as estatísticas, mas que jamais perde de vista os rostos e as histórias por trás dos números. Sua fala, sempre ponderada, revela um profundo conhecimento da máquina pública, de seus entraves e de suas potencialidades. Ela se apresenta não como uma salvadora, mas como uma facilitadora, uma articuladora de um processo que, em sua essência, deve ser coletivo. É com essa bagagem e essa visão que ela encara a tarefa de dar voz e vez a 110 milhões de brasileiras.
O fim do silenciamento coletivo
"Em 2016, depois da 4ª Conferência Nacional, vem um governo que desmobiliza e desautoriza toda relação democrática e federativa", recorda a ministra, com uma clareza que dispensa eufemismos. Suas palavras pintam um quadro sombrio do passado recente. "Houve um claro desfinanciamento das políticas públicas, os ministérios importantes foram extintos e não houve espaço para debate, para críticas e participação, mas uma clara decisão e intenção de acabar com as conferências, com os conselhos, com a participação social."
A expressão que ela usa para definir esse período é contundente: "um silenciamento coletivo das mulheres". O termo vai além da mera ausência de diálogo com o poder central. Representa a asfixia de um ecossistema vibrante, que começava nos municípios, ganhava corpo nas regiões e estados, e culminava em Brasília. As conferências, explica, são muito mais do que eventos. São um processo, um método de escuta e construção que garante que a política pública não seja uma fórmula abstrata, mas uma resposta concreta às realidades vividas por mulheres em um país de dimensões continentais.
A interrupção desse fluxo, segundo Lopes, foi devastadora. A criação do Ministério das Mulheres em 2023, portanto, não foi apenas uma reorganização administrativa. "É uma posição muito clara de um projeto político onde as mulheres têm a centralidade", afirma. A retomada da Conferência é a materialização dessa centralidade. É o Estado dizendo, em alto e bom som: "Nós queremos ouvir vocês. A sua voz importa. A sua experiência é a matéria-prima da nossa ação".
A expectativa para o encontro, nas palavras da ministra, é de um "contexto muito otimista". Mas não um otimismo ingênuo. Um otimismo forjado na luta, na resiliência. "Somos 110 milhões de mulheres no país e mulheres que vivem essa contradição da capacidade de reação, de participação, de construção, de resistência e, ao mesmo tempo, ainda da submissão ao machismo e a tantas formas de violência que são inadmissíveis", analisa. A conferência, então, surge como o palco para canalizar essa energia contraditória, essa força que brota da adversidade. "Agora, as mulheres vêm ávidas por participar, por ter voz, por ter vez, por ter voto."
Mosaico de vozes: a capilaridade da participação
O que torna a 5ª CNPM um evento tão singular não é apenas sua dimensão, mas sua impressionante capilaridade. A jornada até Brasília foi longa e meticulosa, um testemunho do poder da mobilização social quando incentivada pelo poder público. Márcia Lopes detalha um processo que se assemelha à formação de um grande rio, alimentado por incontáveis afluentes.
Tudo começou com as "conferências livres". "Nós tivemos quase mil conferências livres, onde os próprios grupos foram se organizando para tratar de temas que diziam respeito a eles", explica. Foi um convite à auto-organização. "Mulheres jornalistas, mulheres idosas, mulheres com deficiência, mulheres negras, quilombolas, as LGBTs." Cada grupo, com suas pautas específicas, suas dores e suas propostas, teve um espaço para se fazer ouvir. Dessas conferências livres, emergiram quase 1.300 delegadas que trouxeram para o palco nacional a riqueza e a complexidade de suas vivências.
Paralelamente, o processo formal percorreu o país. Conferências municipais e estaduais foram realizadas, elegendo suas próprias representantes. A ministra fez questão de participar ativamente dessa peregrinação democrática. "Em quatro meses, andei por 16 estados e a nossa equipe participou das conferências estaduais que foram muito importantes, representativas, com mulheres de todos os segmentos, de todos os setores", relata. "E essa é a expressão da identidade do país."
A plataforma digital "Brasil Participativo" adicionou outra camada a essa construção, permitindo que cidadãs e cidadãos, de forma individual, pudessem contribuir com propostas. O resultado dessa arquitetura participativa é o que a ministra chama de "pluralidade de vozes", o grande trunfo do encontro.
"Uma coisa são os movimentos sociais, os municípios realizarem atividades, se reunirem em grupos, em setores", diferencia Lopes. "Outra coisa é de fato oportunizar a mobilização social, organizar uma agenda comum de debates, de reflexões, de construção de propostas para aquilo que nós precisamos no Brasil." O papel do Estado, nessa visão, é o de ser um catalisador, um organizador do diálogo, garantindo que a imensa diversidade do país não se perca em pautas fragmentadas, mas que convirja para um projeto nacional. "A 5ª Conferência já sai vitoriosa do ponto de vista da motivação, da mobilização, dessa busca por uma construção coletiva de agendas comuns", celebra.
Desafios do gigante: orçamento, pacto federativo e a política do cuidado
A empolgação da retomada, no entanto, não cega a ministra para os enormes desafios que se apresentam. Construir políticas públicas para as mulheres em um país como o Brasil é uma tarefa hercúlea. O primeiro desafio, aponta, é a própria escala. "O Brasil é um país muito grande." A diversidade não é apenas de identidades, mas também geográfica, econômica e política. Uma solução que funciona em uma capital pode ser inaplicável em um pequeno município amazônico.
A isso se soma a complexidade do pacto federativo. A implementação de qualquer política nacional depende da adesão e do compromisso de governadores e prefeitos. "Quanto mais as lideranças -- sejam parlamentares, sejam do Executivo -- forem unânimes em abraçar a causa das mulheres, as propostas, a política nacional, serão melhores. Mas, temos que construir esses processos política e coletivamente", pondera.
Outro obstáculo, talvez o mais concreto, é o orçamento. Márcia Lopes é pragmática ao abordar o tema. "Temos que enfrentar o desafio orçamentário. Não é porque muda um presidente que, imediatamente, as coisas também passam a funcionar de forma diferente." Ela menciona a mudança na correlação de forças no Congresso Nacional, com a consolidação de mecanismos como o "orçamento secreto" (as emendas de relator) e as emendas impositivas, que alteraram a dinâmica de alocação dos recursos públicos. "Isso exige mais negociação, mais compreensão, mais compromisso, mais pressão da própria sociedade para que os recursos sejam alocados onde devem ser."
Em meio a esses desafios, a ministra destaca duas frentes que devem ser centrais nos debates: a autonomia econômica e a política de cuidados. Sobre a primeira, a Lei da Igualdade Salarial, sancionada em 2023, é vista como um marco. Mas a lei, por si só, não basta. "Se o setor privado assumisse a lei prontamente, porque tem que ser cumprida sob pena de punição, de multa, as mulheres não só se empoderariam, como teriam muito mais autonomia econômica, financeira", argumenta.
A segunda frente é uma das grandes apostas do ministério: a criação de uma Política Nacional de Cuidados. O conceito é revolucionário e ataca a raiz de uma desigualdade histórica: a sobrecarga do trabalho de cuidado (com filhos, idosos, pessoas com deficiência) sobre os ombros das mulheres. "Temos também a lei que criou a Política Nacional de Cuidados e que precisa, agora, ser regulamentada", explica. O plano, de natureza interministerial, busca integrar ações em saúde, educação, assistência social e outras áreas para criar uma rede de apoio.
Ela oferece exemplos práticos: "As universidades podem ter cuidotecas à noite para as mulheres poderem estudar e saber que os seus filhos estão ali cuidados. Não se trata de creche, mas de um espaço de acolhimento e de cuidado." Na saúde, menciona o atendimento domiciliar e o cuidado com a saúde mental, "uma demanda imensa das mulheres". A ideia é que o cuidado deixe de ser uma responsabilidade individual e feminina e passe a ser uma responsabilidade coletiva, do Estado e de toda a sociedade. "Tenho certeza de que a própria conferência vai tratar disso", projeta.
Escudo contra a violência e a luta pela dignidade no trabalho
Nenhuma discussão sobre políticas para mulheres estaria completa sem um foco intenso no combate à violência de gênero. A erradicação do feminicídio é uma meta que a ministra trata com a gravidade que o tema exige. A estratégia passa pelo fortalecimento da Rede de Proteção à Mulher, um conjunto de serviços coordenados pelo ministério.
O programa mais emblemático dessa rede é a Casa da Mulher Brasileira. "Um programa desses custa caro", admite Lopes. "Primeiramente para construir." Ela descreve um equipamento público complexo, que integra em um único espaço a Defensoria Pública, o Ministério Público, a Patrulha Maria da Penha, delegacias especializadas e até o Instituto Médico-Legal (IML). O objetivo é que a mulher vítima de violência encontre todo o apoio necessário sem ter que peregrinar por diferentes locais, revivendo seu trauma a cada etapa. "Para que a mulher seja atendida nele, tem sempre uma equipe de assistente social, psicólogo, advogado, para acolher, para receber as mulheres." A ampliação dessa rede, contudo, esbarra novamente na questão orçamentária. "Temos que ter recursos para ampliá-lo, visto que há grande demanda."
A violência, contudo, não se manifesta apenas na sua forma física. Ela está presente na precarização do trabalho, na desigualdade salarial e no assédio. A conferência também se debruça sobre temas como o fim da escala 6x1 e a redução da jornada de trabalho, pautas que tocam diretamente na qualidade de vida das mulheres.
"As mulheres querem, podem, mas não têm total condição de integrar o processo de desenvolvimento econômico e social sustentável do país", defende a ministra. O que se busca não é um favor, mas isonomia. "O que queremos é que haja igualdade salarial." Sobre a resistência do setor privado em cumprir a lei, ela é enfática: "Vamos ter de encontrar outras formas de mobilizar a sociedade e os empresários para que entendam as condições de trabalho necessárias para as mulheres". Isso inclui o respeito à licença-maternidade, a criação de espaços de cuidado nas empresas e, fundamentalmente, a garantia de um ambiente de trabalho seguro.
"Rotineiramente, além de tudo que as mulheres realizam, produzem, prestam de serviços, elas ainda têm que se preocupar com a sua proteção, com ofensas, xingamentos, atitudes grosseiras, violências no seu espaço de trabalho", desabafa Lopes. "Elas não têm que viver esses dramas." A luta é por um direito básico: o direito de existir e trabalhar com plenitude, integridade e liberdade.
Encantamento, esperança e um plano para o futuro
Ao final, a conversa retorna ao ponto de partida: as quatro mil mulheres que, por três dias, transformarão Brasília. A ministra usa uma palavra poética para descrevê-las: "Digo que 4 mil mulheres encantarão a Esplanada dos Ministérios". É um encantamento que ela mesma testemunhou ao viajar pelo país. "Observamos essa garra, a gana de participação, essa vontade que as mulheres têm de falar, serem ouvidas."
Ela reflete sobre a fonte dessa força inesgotável. "Apesar de serem, muitas vezes, inferiorizadas, exploradas em todos os sentidos, elas ganham essa força. Força que vem de uma solidariedade que é defendida individualmente. Mas é sempre uma defesa coletiva." É uma força que se expande, que cuida da família, da vizinhança, da comunidade, do país.
O ministério, sob sua gestão, tem tentado espelhar essa diversidade, criando fóruns específicos para os mais variados grupos: pescadoras, quebradoras de coco-babaçu, mulheres trans, indígenas, empresárias, sindicalistas. "A gente vai aprendendo com essas identidades, esses modos de vida", confessa. "Penso que essa pluralidade de vozes vai fortalecer um projeto de nação."
E qual o destino de toda essa energia, de todas as propostas debatidas e aprovadas? O resultado prático e mais aguardado é a construção de um novo Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. "A partir desta conferência, vamos construir outro processo ainda mais coletivo", anuncia a ministra. O plano anterior, já defasado, dará lugar a um documento atualizado, moldado pelo momento presente.
"Estou certa de que será um plano democrático, que defenda a soberania do país, a autonomia das mulheres, a participação delas em todos os campos, em todos os âmbitos do conhecimento, da ciência e de tudo daquilo que se projeta para o futuro", vaticina.
As quatro mil mulheres que encantam Brasília nesta 5ª Conferência retornarão a seus lares, a suas cidades e a suas lutas, mas não mais como vozes isoladas. Elas retornarão como parte de uma orquestra afinada, cientes de sua força coletiva e munidas de uma partitura construída a muitas mãos. Sob a regência serena e firme de Márcia Lopes, o que se projeta não é apenas um conjunto de políticas públicas, mas a utopia concreta de uma nação onde ser mulher não seja um fator de risco, mas uma potência de transformação. A marcha, enfim, foi retomada. E seu ritmo, agora, parece imparável.






