A crescente onda de intoxicações e mortes causadas pelo consumo de bebidas alcoólicas adulteradas com metanol acendeu um alerta em todo o Brasil. As informações sobre os perigos dessa substância, sua ação no organismo e as formas de prevenção foram detalhadas pelo professor de Química da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), campus de Várzea Grande, Felipe Thomaz Aquino, em entrevista ao “Jornal da Cultura”, apresentado pelos jornalistas Antero Paes de Barros e Michely Figueiredo.
O professor esclareceu a relação entre o metanol e o etanol, o álcool comum presente em bebidas. “O metanol é um irmãozinho do mal do etanol”, afirmou, destacando que ambos pertencem à mesma classe de substâncias orgânicas, os álcoois, e são quimicamente muito parecidos. “E aí que está o grande problema, né? Da detecção dessa substância nas bebidas”.
Apesar da semelhança estrutural, a ação das duas substâncias no corpo humano é drasticamente diferente. O metanol, ao contrário do etanol, possui uma toxicidade muito elevada. “O organismo não consegue processar da mesma maneira essa substância”, explicou Aquino. Enquanto o etanol causa prejuízos conhecidos ao organismo, o metanol provoca uma “toxicidade aguda”.
Os sintomas iniciais da intoxicação por metanol podem ser facilmente confundidos com os de uma forte ressaca, incluindo dor de cabeça e mal-estar digestivo. Contudo, a evolução do quadro apresenta sinais mais graves e específicos. “Aí vem outros sintomas, como a cegueira que tem afetado as pessoas, a visão fica turva, às vezes realmente chega a nublar a visão completamente”, alertou o professor.
Esse efeito devastador ocorre porque, durante o processo de metabolização, o organismo transforma o metanol em outras substâncias tóxicas que atacam diretamente órgãos vitais como os pulmões, os rins e o cérebro, podendo levar ao óbito rapidamente.
Felipe Thomaz Aquino foi enfático ao corrigir uma percepção comum: enquanto o etanol está presente em todas as bebidas alcoólicas, desde a cerveja até os destilados, “o metanol não deveria estar presente em nenhuma bebida”.
O uso industrial correto do metanol é vasto, sendo aplicado na fabricação de polímeros (plásticos) e como solvente em reações químicas para dissolver substâncias que não se misturam em água ou no próprio etanol. Por ser uma substância de uso controlado, sua comercialização deveria ser rigorosamente fiscalizada. “Essa substância, ela deveria ter um controle, um controle da polícia, inclusive”, pontuou.
Uma das questões levantadas foi se a presença do metanol poderia ser um erro de produção e não uma adição criminosa. O professor explicou que, em bebidas obtidas por fermentação e destilação, como cachaças e uísques, pode haver um resíduo de metanol se o processo de destilação não for feito corretamente para purificar a bebida.
No entanto, a situação atual é diferente. “Pela quantidade que está sendo vista, sim, pelos efeitos muito rápidos, acredita-se que a quantidade é muito grande”, declarou Aquino. Em um processo de destilação malfeito, a quantidade de metanol seria residual e menor. Nos casos recentes, a suspeita é de que o metanol foi adicionado deliberadamente para aumentar o volume da bebida, visando um lucro maior.
A detecção da fraude é um desafio, pois, a olho nu, não é possível diferenciar uma bebida pura de uma contaminada. Essa dificuldade também se aplica à adulteração de combustíveis, onde já foram encontrados relatos de até 90% de metanol adicionado ao etanol combustível.
Sobre o manejo dos pacientes intoxicados, o professor mencionou a existência de um antídoto, o fomepizol. Contudo, citou que a Secretaria de Saúde de São Paulo, epicentro dos casos, alegou não estar preparada para a demanda, visto que o histórico de intoxicações em massa era inexistente no país. “O governo federal agora importou e destinou pra eles”, informou, ressaltando que as contaminações anteriores eram pontuais, geralmente associadas a cachaças de alambique com destilação inadequada.
A velocidade e a gravidade da intoxicação são alarmantes. O professor relatou um caso de um conhecido em São Paulo que faleceu na ambulância a caminho do hospital. Em outra situação, uma mulher foi intoxicada ao consumir um drink pronto, sem ter acesso à garrafa da bebida utilizada no preparo.
Como alternativa de detecção rápida, foram mencionados sensores em desenvolvimento, como um canudo criado pela Universidade da Paraíba que muda de cor em contato com a substância.
Questionado sobre a segurança em bares e restaurantes de Mato Grosso, o professor foi cauteloso. “Infelizmente não tem como colocar a mão no fogo por ninguém”, disse, explicando que até mesmo o dono de um estabelecimento pode ser enganado ao adquirir um lote de bebidas de uma marca conhecida, mas que foi adulterada na cadeia de distribuição.
A recomendação para os empresários do setor é desconfiar de ofertas muito vantajosas. “O barato sai caro”, resumiu. Manter fornecedores de confiança é a principal medida de segurança neste momento. Adquirir um produto pela metade do preço, mesmo de uma marca famosa, deve acender um alerta.
Para o poder público, Aquino recomendou uma ação de fiscalização ágil, com coleta de amostras em supermercados e distribuidoras para análise em laboratórios certificados. “O que importa é o impacto na população”, frisou, defendendo que a prioridade deve ser identificar e retirar os produtos contaminados de circulação, em vez de focar apenas na investigação da origem criminosa.
A própria UFMT, segundo ele, possui equipamentos e pessoal qualificado para realizar as análises, mas o processo para prestar esse serviço à comunidade enfrenta barreiras burocráticas que precisariam ser superadas com celeridade diante da urgência da situação.
Ao final da entrevista, o professor apresentou seu projeto de divulgação científica, o "Ciência sem Moagem", que busca traduzir o conhecimento científico para uma linguagem acessível ao grande público através das redes sociais e de um livro recém-lançado. “Evitar, né? As trevas da ignorância, como eu sempre falo, é necessário”, concluiu, defendendo a ciência como uma ferramenta essencial para a transformação da sociedade.
Sobre casos de intoxicação por metanol no Brasil
O esquema de falsificação de bebidas alcoólicas com metanol se tornou uma grave crise de saúde pública no Brasil, com a maioria dos casos concentrados no estado de São Paulo. De acordo com levantamentos de portais como G1, UOL e CNN Brasil, até o início de 2024, as autoridades de saúde paulistas confirmaram dezenas de internações e um número significativo de óbitos ligados diretamente ao consumo das bebidas contaminadas.
Investigações da Polícia Civil apontam para a participação do crime organizado, especialmente o PCC (Primeiro Comando da Capital), que estaria desviando metanol de uso industrial para adulterar bebidas de baixo custo, como uísques, vodcas e gins falsificados, vendidos principalmente em comunidades e adegas de periferia. A motivação seria o alto lucro obtido com a fraude.
O balanço oficial, atualizado nesta quarta-feira (29), registrou 59 pessoas intoxicadas e pelo menos 15 mortes confirmadas. Nove em São Paulo, três no Paraná e três em Pernambuco. Outros 9 óbitos estão sendo investigados, três em Pernambuco, dois no Paraná, um em Minas Gerais, um no Mato Grosso do Sul, e dois em São Paulo.
A situação levou o Ministério da Saúde a importar em caráter de urgência o antídoto fomepizol para tratar os pacientes. A polícia realizou diversas operações que resultaram na apreensão de milhares de litros de bebidas adulteradas e na prisão de suspeitos de envolvimento no esquema. O alerta permanece em nível nacional, com recomendação para que consumidores e comerciantes verifiquem a procedência das bebidas e desconfiem de preços muito abaixo do mercado.
 
     
     
     
     
     
    









