AMOR SEM MEDO Segunda-feira, 04 de Agosto de 2025, 07:56 - A | A

Segunda-feira, 04 de Agosto de 2025, 07h:56 - A | A

AMOR SEM MEDO

A voz de Jannira: o silêncio quebrado que ensina a falar

Mauro Camargo

O ar-condicionado do estúdio é uma fortaleza contra o mundo. Lá fora, o sol escaldante insiste em dobrar o asfalto de Cuiabá, um calor implacável que parece silenciar a própria cidade ao meio da tarde. Aqui dentro, no ambiente controlado do programa Nossa República, o silêncio é de outra natureza. É um silêncio denso, carregado de expectativa, um vácuo que antecede a tempestade.

As luzes estão postas, as câmeras ajustadas, e o tempo, que lá fora corre lento e pesado, aqui dentro parece suspenso, aguardando a primeira palavra que definirá os próximos quarenta e cinco minutos. Diante de mim, a delegada de polícia Jannira Laranjeira ajusta-se na cadeira.

Ela não traz consigo apenas a autoridade formal de seu cargo, a imponência de uma carreira dedicada à lei; há em sua postura uma serenidade quase desconcertante, a calma de quem aprendeu a navegar em águas turbulentas. Seu olhar não desvia, não hesita. É o olhar de quem já viu o abismo e decidiu, em vez de recuar, construir uma ponte sobre ele.

Esta conversa, que se tornará um episódio de televisão e, agora, esta reportagem para o projeto AMOR SEM MEDO, nasce sob o signo do Agosto Lilás, um mês dedicado a jogar luz sobre uma escuridão que devora vidas nos espaços mais íntimos: a violência doméstica e o feminicídio.

E Jannira, com sua voz que em instantes se revelará tão firme quanto suave, seria a bússola a nos guiar por este labirinto de sofrimento e esperança. Seu currículo é vasto, uma longa lista de especializações no enfrentamento a crimes sexuais, na proteção de mulheres e crianças, mas logo ficaria claro que sua verdadeira expertise não foi forjada em manuais de direito ou em cursos de investigação.

Ela brota de uma vivência que a conecta de forma visceral àquelas que hoje busca proteger. A pergunta que pairava no ar, inevitável, era sobre a gênese de tudo. O que leva uma mulher a mergulhar tão fundo em um oceano de dor alheia?

A resposta veio sem rodeios, direta, despida de qualquer artifício. “Bom, Mauro, eu tenho uma trajetória que não é diferente da população brasileira, da maioria das mulheres. Venho de um lar adoecido, de um lar também atingido pela violência doméstica.” A frase ecoou no estúdio, carregada de uma honestidade brutal.

Naquele momento, não era a voz da delegada, mas a da mulher, da sobrevivente. Ela desvelou uma história pessoal marcada por violência sexual, uma ferida que, por muito tempo, a fez resistir ao seu próprio chamado. “Eu costumo dizer que estou em processo de cura”, confidenciou, abrindo uma janela para a complexidade de sua jornada.

A recusa inicial em aceitar convites para atuar na Delegacia da Mulher era, na verdade, um mecanismo de defesa, um escudo contra a dor de revisitar os próprios traumas. Ela não compreendia, na época, a origem daquela aversão, daquele bloqueio que a impedia de abraçar uma causa que, no fundo, já era sua.

O ponto de virada, a epifania que realinharia sua vida e sua carreira, ocorreu em 2020, sob o céu cinzento da pandemia. Designada para a Delegacia da Mulher, onde inaugurou o Plantão Especializado, Jannira se viu no epicentro do sofrimento alheio e, paradoxalmente, encontrou ali o caminho para o seu próprio processo de cura.

“Quando assumi essa unidade, em 2020, eu percebi que a minha história coincidiu com as histórias da maioria das mulheres que ali passaram”, contou. Cada relato, cada lágrima, cada desabafo das vítimas que buscavam ajuda ressoava em sua própria memória. A escuta atenta do outro tornou-se uma forma de se ouvir.

Aquele ambiente, que ela tanto temera, transformou-se em um espelho. Foi ali que ela começou a decodificar sua própria vida, a nomear as violências que havia sofrido. “Esse ciclo de violência e a naturalização de comportamentos abusivos dentro do lar são tão intensos que não nos vemos como vítimas. E ali, eu comecei a perceber que os comportamentos que vivenciei na minha infância, na adolescência e na vida adulta eram comportamentos abusivos.”

Dessa dolorosa autodescoberta, nasceu uma força transformadora. Jannira decidiu que sua dor não seria um fardo, mas uma ferramenta. Assim, da vivência negativa, da ferida exposta, surgiu o Movimento Voz. A ideia foi gestada em um período de convalescença, um afastamento forçado que lhe deu o tempo e a perspectiva para amadurecer o projeto.

O que começou com palestras gratuitas e orientação individual expandiu-se. Hoje, o Voz é uma plataforma em crescimento, com uma página de direcionamento e uma rede de voluntárias — advogadas, psicólogas, assistentes sociais — que se dispõem a ser o primeiro ouvido para mulheres que precisam de ajuda. O nome não poderia ser mais emblemático. O objetivo central é potencializar as mulheres a quebrarem o silêncio, a encontrarem sua própria voz para romper com a opressão.

“Nosso objetivo”, explica Jannira com uma clareza apaixonada, “é ajudar as mulheres a se exporem e se esclarecerem, para que não sejam tidas como loucas”. Esta é uma observação crucial. Muitas vítimas chegam às delegacias em um estado de completo desequilíbrio emocional, um resultado direto e esperado do terror psicológico a que são submetidas.

A sociedade, contudo, muitas vezes interpreta esse desespero não como um sintoma da violência, mas como uma falha da própria mulher, uma suposta instabilidade que convenientemente invalida seu testemunho.

Quebrar o silêncio, portanto, é um ato de subversão. É retirar do abusador sua arma mais poderosa: a vergonha da vítima. “Esse silêncio apenas beneficia o abusador, que continua tendo sua reputação ilibada na sociedade”, pontua a delegada. É um ciclo perverso onde o constrangimento da mulher em expor sua intimidade dolorosa alimenta a impunidade do agressor, que se esconde atrás de uma fachada de normalidade.

A conversa, então, mergulha nas raízes culturais que sustentam essa epidemia. O machismo estrutural, a misoginia velada, a necessidade de autoafirmação de homens que se sentem ameaçados por mulheres que ousam ser independentes. Jannira descreve com precisão a dinâmica do controle. “Existe uma visível necessidade dos homens agressores de exercerem controle sobre as mulheres, e isso é uma fraqueza assustadora.”

Não é uma demonstração de força, ela argumenta, mas o exato oposto. É o medo disfarçado de autoridade, a insegurança mascarada de ciúme. O ciúme doentio, a possessividade que se disfarça de amor, mas que na verdade é uma manifestação de dominação, uma declaração de que a mulher é vista como propriedade. Essa mentalidade, que objetifica o ser humano, é o solo fértil onde a violência germina e floresce, culminando, não raras vezes, no ato extremo do feminicídio.

E os números são um soco no estômago. Mato Grosso, um estado de postura conservadora e tradições arraigadas, ostenta uma das mais altas taxas de feminicídio do Brasil. O relatório de 2024, citado por Jannira, é um obituário que se renova. Mas o assassinato é apenas o capítulo final de uma longa história de horror.

“O feminicídio é frequentemente preanunciado”, alerta. As mulheres passam por serviços de saúde com lesões inexplicadas, buscam ajuda na assistência social com relatos velados, mas o sistema é incapaz de conectar os pontos. A subnotificação é um monstro invisível que devora as evidências.

O ciclo da violência, um conceito bem estudado, começa de forma insidiosa, com abusos emocionais e psicológicos que minam a autoestima da vítima, que a fazem duvidar de sua própria sanidade, a acreditar que merece o que está vivendo. É um processo de despersonalização que a torna cada vez mais vulnerável e dependente do agressor.

É nesse ponto que a análise de Jannira se volta para as falhas do Estado, para a ineficácia das políticas de proteção. As leis existem, como a Lei Maria da Penha e o Pacote Antifeminicídio, avanços inegáveis que dão nome e visibilidade ao problema. Contudo, a distância entre a lei no papel e a segurança na realidade é um abismo.

A medida protetiva, que deveria ser um escudo, muitas vezes não passa de uma folha de papel. “Não é simplesmente dar um papel pra ela e deixá-la ir embora, né?”, questiona, expondo a fragilidade do sistema. O botão do pânico existe, mas é eficiente? O atendimento é ágil? A realidade, ela descreve, é desoladora.

Ela relata uma queixa recorrente, ouvida em suas próprias qualificações com policiais: a guarnição só se desloca se o agressor estiver presente no local no momento da chamada. Se ele quebra a medida protetiva — arromba a porta, ameaça, agride — e foge antes da chegada da polícia, a ocorrência muitas vezes não é atendida.

A justificativa? Falta de efetivo para ocorrências que não resultarão em prisão em flagrante. A mensagem que o sistema passa para a vítima é terrível: sua segurança só importa se for conveniente para a prisão do agressor. Para que a quebra da medida seja levada a sério, a mulher precisa, mais uma vez, se deslocar até uma unidade policial, enfrentar a burocracia e registrar um novo boletim. É um ciclo de revitimização que exaure e desencoraja.

Enquanto isso, o agressor, sentindo-se impune, continua a infringir a ordem. O juiz pode demorar a decidir sobre uma medida mais severa, como a prisão preventiva, e a mulher permanece em um limbo de medo. A assistência, pilar fundamental da lei, também é falha.

Que garantias são oferecidas àquela mulher que decide romper o ciclo? O Estado vai inseri-la no mercado de trabalho? Vai garantir uma moradia segura para ela e seus filhos? As casas abrigo, refúgios que deveriam ser a última linha de defesa, são insuficientes. Jannira conta, com a voz carregada de uma frustração palpável, as inúmeras vezes em que delegados e assistentes sociais tiveram que, por conta própria, encontrar lugares para abrigar mulheres, tirando-as de suas casas por falta de uma estrutura estatal que cumprisse seu papel mais básico.

É ao refletir sobre os três pilares da Lei Maria da Penha – prevenção, proteção e assistência – que Jannira Laranjeiras oferece sua contribuição mais original e poderosa. Ela propõe a inclusão de um quarto pilar: a comunicação.

“É necessário que haja uma discussão ampla na sociedade sobre a violência contra as mulheres, que ela se torne um tema presente no cotidiano”, defende. Não como uma pauta sazonal, restrita ao Agosto Lilás ou a datas específicas, mas como um debate permanente, martelado incessantemente nas escolas, nas famílias, nas empresas, na mídia.

Ela faz uma comparação brilhante com a forma como a sociedade lidou com a epidemia de AIDS. Houve um tempo em que a doença era um tabu, cercada de estigma e desinformação. Foi uma comunicação massiva, agressiva e onipresente que desmistificou o tema, promoveu a prevenção e salvou vidas.

A violência contra a mulher, ela argumenta, precisa de um tratamento de choque similar. Uma campanha que atinja todos os estratos da sociedade, que desconstrua mitos, que ensine meninos sobre respeito e meninas sobre seus direitos, que empodere as vítimas e responsabilize os agressores e a sociedade que os tolera.

“Quando o foco se perde, quando a comunicação falha, voltamos a retroceder”, adverte. E essa comunicação precisa estar atrelada a uma mudança estrutural. Janira defende a descentralização da assistência. Uma mulher não deveria precisar ir a uma delegacia, um ambiente muitas vezes intimidante, para pedir ajuda.

Ela deveria poder fazer isso em uma unidade de saúde, em um CRAS, em qualquer porta do serviço público, onde encontraria profissionais capacitados para acolhê-la e iniciar o processo de proteção. Criar uma rede integrada, que dialogue e funcione, é a única saída.

A mudança, ela admite com uma ponta de melancolia, requer mais do que leis e boas intenções. Requer uma transformação de mentalidade, especialmente entre aqueles que dirigem as instituições. A burocracia, a falta de recursos, a inércia institucional são barreiras que só podem ser derrubadas com vontade política real.

Ao final dos nossos quarenta e cinco minutos, o silêncio retorna ao estúdio. Mas agora é um silêncio diferente, um silêncio pesado, reflexivo. A voz de Janira Laranjeiras, que um dia foi calada pela dor, hoje ecoa como um grito de esperança e um chamado urgente à responsabilidade. Sua história nos lembra que por trás de cada estatística, há um rosto, uma vida, uma família destruída. Sua análise nos mostra que a solução não é simples, mas é possível.

Saio daquela sala fria e reencontro o calor da tarde cuiabana, mas o mundo parece um pouco diferente. A luta contra a violência doméstica não pode ser uma preocupação exclusiva de especialistas como a delegado Jannira. Tem que ser uma obsessão de todos nós.

É preciso que o tema ganhe espaço nas vozes que decidem nosso futuro, que se torne uma prioridade nas políticas públicas. Caso contrário, corremos o risco de que essa chaga social se torne como a hanseníase: uma doença bíblica, que sabemos como tratar, mas que, por descaso e esquecimento, permitimos que continue a mutilar e a matar.

Que a história de Jannira e sua incansável busca por dar voz a quem foi silenciada nos inspire a todos a quebrar nossos próprios silêncios e a lutar, de uma vez por todas, por um mundo onde o amor nunca seja sinônimo de medo. 




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JUSCILENY SIQUEIRA CAMPOS FERLETE 04/08/2025

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