Neste dia 7 de agosto, o Brasil celebra o 19º aniversário da Lei nº 11.340, mais conhecida como Lei Maria da Penha. Considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) uma das três legislações mais avançadas do mundo no enfrentamento à violência contra as mulheres, a norma representa um divisor de águas na proteção dos direitos humanos femininos no país. Sua criação não foi apenas uma resposta legislativa, mas o resultado de uma longa e dolorosa luta por justiça.
A lei leva o nome de Maria da Penha Maia Fernandes, uma farmacêutica cearense que, em 1983, foi vítima de duas tentativas de homicídio por parte de seu então marido. Na primeira, ele atirou em suas costas enquanto ela dormia, deixando-a paraplégica. Na segunda, tentou eletrocutá-la durante o banho.
Após anos de morosidade e impunidade na justiça brasileira, com o agressor permanecendo em liberdade, Maria da Penha levou seu caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 1998. Em 2001, o Brasil foi condenado internacionalmente por negligência e omissão, sendo instado a criar uma legislação eficaz para coibir a violência doméstica. Essa condenação foi o catalisador para a formação de um consórcio de ONGs que, em conjunto com o governo federal, elaborou o projeto que se tornaria a Lei Maria da Penha, sancionada em 2006.
Principais dispositivos e inovações jurídicas
A Lei Maria da Penha trouxe mudanças profundas ao ordenamento jurídico. Sua principal inovação foi definir a violência doméstica não apenas como agressão física, mas tipificar cinco formas de violência:
* Física: Qualquer conduta que ofenda a integridade ou saúde corporal.
Psicológica: Ações que causem dano emocional, como ameaças, humilhação e manipulação.
Sexual: Atos que forcem a mulher a presenciar, manter ou participar de relação sexual não desejada.
Patrimonial: Condutas que configurem retenção, subtração ou destruição de bens e recursos econômicos.
Moral: Ações como calúnia, difamação ou injúria.
Além disso, a lei determinou a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com equipes multidisciplinares (psicólogos, assistentes sociais) para um atendimento especializado e humanizado.
Mecanismos de proteção à mulher
Para garantir a segurança da vítima, a lei estabeleceu as medidas protetivas de urgência, que podem ser concedidas por um juiz em até 48 horas. Entre as principais, estão:
* Afastamento do agressor do lar;
Proibição de aproximação e contato com a vítima, familiares e testemunhas;
Restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores;
Obrigação do agressor de participar de programas de recuperação e reeducação.
Alterações e atualizações subsequentes
Desde sua promulgação, a lei passou por importantes atualizações para fortalecer sua eficácia:
* Lei do Feminicídio (2015): Classificou o assassinato de mulheres em contexto de violência doméstica como crime hediondo.
Lei nº 13.641/2018: Tornou crime o descumprimento de medidas protetivas de urgência.
Lei nº 14.188/2021: Instituiu o programa "Sinal Vermelho", que permite à vítima pedir ajuda de forma silenciosa em farmácias e outros estabelecimentos mostrando um "X" vermelho na palma da mão.
Lei nº 14.994/2024: Pacote Antifeminicídio tornou o feminicídio crime autônomo, agravou a sua pena e a de outros crimes praticados contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, bem como estabeleceu outras medidas destinadas a prevenir e coibir a violência praticada contra a mulher.
O impacto da lei na sociedade brasileira
1. No combate à violência e prevenção do feminicídio
Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelam a dimensão do problema e a importância da lei: em 2024, foram registrados 1.467 casos de feminicídio no Brasil, uma média de quatro mulheres mortas por dia. No mesmo ano, mais de 540 mil medidas protetivas foram concedidas, mostrando que a lei é um instrumento vital e amplamente acionado para a proteção. Estudos do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) indicam que a Lei Maria da Penha foi responsável por uma diminuição de cerca de 10% na taxa de homicídios de mulheres dentro de casa.
2. Na mudança cultural e social
Talvez o maior legado da Lei Maria da Penha tenha sido cultural. Ela retirou a violência doméstica da esfera privada do "em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher" e a transformou em uma grave violação dos direitos humanos, que exige a intervenção do Estado. A legislação impulsionou campanhas de conscientização e encorajou mulheres a denunciarem, dando visibilidade a um problema antes silencenciado.
A promotora de justiça Luísa Nagib Eluf destaca essa função transformadora: "A vigência de uma norma específica para violência de gênero tem função esclarecedora e inibidora, educativa e elucidativa."
Análise crítica e os desafios futuros
Apesar dos avanços inegáveis, a implementação da Lei Maria da Penha ainda enfrenta desafios significativos. A aplicação efetiva da legislação não é uniforme em todo o território nacional, com muitas cidades ainda carecendo de Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs), casas-abrigo e equipes multidisciplinares completas. O atendimento à vítima, em muitos locais, ainda é precário, o que pode desestimular a denúncia.
A desembargadora aposentada Maria Berenice Dias, uma das maiores especialistas em direito de família do país, aponta para a complexidade da questão: "A autonomia da mulher não pode ser suprimida por uma atuação automática do Estado." Isso ressalta a necessidade de políticas públicas que não apenas punam o agressor, mas que também fortaleçam a vítima, garantindo sua autonomia econômica e psicológica.
O futuro exige mais do que a existência da lei; demanda seu fortalecimento. É crucial investir na ampliação da rede de proteção, na capacitação contínua de policiais, juízes e promotores, e, fundamentalmente, na educação para a igualdade de gênero, a única ferramenta capaz de erradicar as raízes culturais da violência contra a mulher. A Lei Maria da Penha é um escudo poderoso, mas a luta por uma sociedade onde ele não seja mais necessário continua.
Fontes da Pesquisa: epd.edu.br, jusbrasil.com.br, brasilescola.uol.com.br, cnj.jus.br, direitonet.com.br, pt.wikipedia.org, emporio.tirant.com.