CONTEMPORANEIDADES Sexta-feira, 09 de Outubro de 2020, 10:11 - A | A

Sexta-feira, 09 de Outubro de 2020, 10h:11 - A | A

NINA RICCI

Escrevo para a ouvir o que vem de longe

Nina Ricci

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Artista, licenciada em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo e recentemente ingressou oficialmente na formação continuada em Artes do diálogo pela Universidade de Nós Pessoas. @ninamricci

“Camila, todo mundo canta, mas…”

Esse título foi meu irmão Miguel quem me deu de presente. Dedico esse texto a ele, aos muitos pontos de vista que sempre existirão no mundo e como podemos aprender a jogar com tudo isso.

Outro dia ele apareceu do nada perguntando se eu conhecia a canção “Camila, Camila” do Nenhum de nós. Eu suspeitava que não, estou longe de ser uma grande conhecedora do rock brasileiro e pior ainda em lembrar das letras das músicas. Mas logo que começou reconheci o refrão, que provavelmente vai ressoar aí também antes mesmo que você termine essa frase: “CAMILAAAA, CAMILAAAA, CAMILAA, CAMILAAAA”. Ouviu? rsrs

De cara me chamaram atenção os versos: “Eu que tenho medo até de suas mãos/ Mas o ódio cega e você não percebe/ Eu que tenho medo até do seu olhar/ Mas o ódio cega e você não percebe”. Estou lendo o livro da Márcia Tiburi “Como conversar com um fascista” e fiquei muito espantada em me reconhecer várias vezes na postura do odiador cego que perde completamente a capacidade de ver o outro como sujeito, que simplesmente não consegue ouvir ou compreender o que o outro tem a dizer. Nesses tempos de fomento ao ódio, quem está imune? Não sejamos ingênuas... esse ódio é reforçado diariamente e serve apenas para criar distâncias, nos mata umas às outras.

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Talvez por isso mesmo tenha passado rapidamente pela cabeça se era algum tipo de provocação, justamente pelas divergências políticas que temos e que precisamos de muito jogo de cintura e respeito para lidar. Todas nós sabemos como é complexo conseguir ver da perspectiva de outra pessoa - confesso que às vezes me parece impossível. Mas por acreditar que sem isso não há esperança, quase todos os dias busco formas de esquiva… (tem dias que nem um triplo mortal carpado ajuda, sabemos bem)

Cheguei ao fim da canção e fui atrás da letra para ver se encontrava pistas antes de respondê-lo. Fiquei pensando como é possível ter algo dentro de nós há tanto tempo e nunca termos ouvido com atenção, nunca termos parado para refletir... simplesmente repetimos - e olha que aqui falo de uma simples canção. Ironicamente, logo que escrevi ele me respondeu contando a bendita história desconhecida por ambos até então. Ficamos muito surpresos ao descobrir que Camila é o nome fictício dado a uma amiga dos integrantes da banda, que sofria violência doméstica num relacionamento abusivo. Não adentrarei na interpretação da canção, mas convido a curiosidade de vocês a buscar. O que valeu desse nosso papo é que ganhei de bandeja a reflexão que prossigo nessa escrita. E, diga-se de passagem, fico muito feliz sempre que as sincronias da vida operam e facilitam a criação.

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Não precisa muito para perceber que estamos vivendo no olho do furacão das verdades, pós-verdades, mentiras, fake news…. e que no limite, isso nos leva a um estado de caos e exaustão. Imagina o que é viver sem a menor possibilidade de discernir entre o que se pode confiar e o que não?

Para dizer a verdade prefiro nem ficar imaginando os desdobramentos, até porque muitos deles já são sensíveis hoje, nos processos eleitorais, nas repercussões da pandemia, é coisa fresca mesmo! Nunca me esqueço de uma aula na graduação aberta com uma intrigante frase do Walter Benjamim que dizia algo como: “Uma época que não sabe distinguir uma coisa de seu contrário, é uma época de barbárie”. Recordo a sensação de incômodo que aquela frase me causou e nem sabia direito porquê, talvez por pressentir que essa ideia de um estado geral de bem-estar nunca existiu como idealizamos, nem vai existir, pelo menos não aos nossos olhos. E talvez porque a frase assombra mesmo.

Os impactos desse processo exaustivo e insano de exposição à suposta informação estão na nossa pele, tensionando os músculos até nos deixar paralisados; nas nossas conversas afoitas; naquilo que compartilhamos incessantemente sem sequer refletir. A desatenção e ignorância diante daqueles versos gravados na memória, nos fez pensar em como esse processo de massificação é muito maior do que nos damos conta. Não é de se estranhar que o sentimento de confusão seja comum a tantos de nós, essa mistura de cansaço e dificuldade de discernir parece ser fruto de um processo histórico amplo e intenso que atravessa incontáveis gerações.

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O tempo escasso, tomado pelo trabalho e consumo, mina a cada dia os espaços de encontro, de cultivo das relações e manifestações culturais. Sem ignorar os recortes sociais, tomo como exemplo as histórias que minha mãe conta, sobre como era comum em sua juventude a turma se reunir para beber e escutar as músicas uma a uma, abrir os encartes do disco e acompanhar a letra. Tal experiência, mesmo não pretendendo ter um caráter universalizante, parece remontar um contexto em que se experimenta uma outra relação de tempo para a apreensão das coisas. Que talvez permitisse algum aprofundamento... ou no mínimo rendia boas histórias, que sem elas não vivemos!

Então me pergunto se é possível ainda reparar esse acúmulo de informação e desinformação que nos pesa a todas. Acham que é possível? Bem, as histórias contadas no mundo dizem que sim, que já passamos por inúmeros contextos mais ou menos violentos, mais ou menos acelerados. Para vislumbrar esses percursos de reparação, ando me apoiando nos ombros das velhas que estão abaixo de meus pés, como conta a autora Clarissa Pinkola Estés: “Percebi que ela também estava nos ombros de uma mulher mais velha do que ela, que estava nos ombros de outra criatura, que estava nos ombros [...] se existe uma única fonte das histórias e um espírito das histórias, ela está nessa longa corrente de seres humanos.”

Faz algum tempo que li uma frase que tomou conta da minha vida em quase todos os aspectos, é um ditado Iorubano que diz: Se você não sabe para onde vai, olha para trás e pelo menos saiba de onde veio”.

Caminhar olhando fundo para o nosso passado parece ser uma bela estratégia de sobrevivência em qualquer tempo. O passado é o que existiu, nele há pistas, motivos para reinvenção, sonhos a serem resgatados, revistos, adaptados, por que não tentar outra vez ajustando aqui e ali? Em vez de querermos sempre inventar a roda, sendo que a roda gira há tanto tempo! Escutar as canções e mapear possíveis leituras, entendimentos de mundo. Quase como arqueólogas, revisitar os fósseis, aprender suas danças e aprender a dançar, a partir delas, nossa própria dança.

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É justamente no que dizemos antigo que penso estar alguma saída para esse processo de cegueira. Quando quase tudo à nossa volta parece turvo, talvez seja preciso voltar a ouvir, em vez de querer ver em high definition... ouvir as vozes da ancestralidade, a voz da terra, a terra mesmo, esse chão que pisamos e que remonta tanta vivência. Não de uma perspectiva conservadora, tampouco enrijecedora que pretenda manter o passado intocável, mas com a sapiência de que o passado vibra e se atualiza em nós a todo instante.

Veja, que se não fosse a tal da Camila, cuja história inspirou a canção resgatada pelo meu irmão, todo esse palavreado não existiria. Tenho essa fé de que as ideias querem ser contadas e só precisam de alguém que as coloque em movimento, elas só precisam de um corpo aberto para chegar e brincar. Tem tanta gente dizendo isso há tempos: rever as narrativas, reconectar os laços perdidos, nos compreender sob outras linguagens e olhares. E é claro que isso não fui eu que inventei, me contaram! Como diria seu Manoel de Barros, só 10% é mentira, o resto é invenção.



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