Os sinais, muitas vezes, não são visíveis de imediato. Um estudante evita contato visual; outro reage com agressividade às provocações mais leves; uma adolescente se isola no intervalo. Para Maria Celma Oliveira, vice-presidente do Sindicato dos Trabalhadores do Ensino Público de Mato Grosso (SINTEP-MT) e integrante do Movimento Mulheres, tais comportamentos podem ter raízes profundas: a violência doméstica vivida ou testemunhada.
“Não há como essa criança ou esse adolescente não levar isso para a escola”, afirma. “Pode se manifestar em forma de agressão, de rebeldia ou no fechamento, quando o aluno deixa de se sociabilizar com os demais. Isso compromete diretamente o processo de ensino e aprendizagem. Educação é muito mais do que provas. Educação é muito mais do que índices. Você precisa olhar o contexto social que afeta esse jovem, esse adolescente, essa criança, o que que ele tá trazendo de fora para dentro da escola?”, relata a educadora aposentada.
Maria Celma passou quase 30 anos em sala de aula. Aposentou-se no ano passado, mas não deixou a luta. Hoje se dedica ao Sindicato e integra o Movimento de Mulheres em busca de garantir igualdade de direitos.
Para ela, a escola não pode se furtar ao debate que visa mudar o contexto vivido por Mato Grosso, onde a cada 100 mil mulheres, 2,5 são vítimas de feminicídio. O índice é mais que o dobro do registrado no Brasil, onde a taxa é de 1,4 - conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024.
Entre janeiro e julho deste ano, 32 mulheres foram vítimas de feminicídio em Mato Grosso, um contexto que, segundo a dirigente, é impossível de dissociar da realidade escolar.
A rede pública de ensino, composta por mais de 90% de mulheres, “recebe, todos os dias, filhos e filhas da classe trabalhadora. O que acontece nas famílias chega até nós”, diz Maria Celma.
Ela defende que, apesar das barreiras no debate sobre violência doméstica e gênero, a escola precisa enfrentar o tema.
“É ali que as diferentes identidades se encontram — e os conflitos também. Ignorar isso é abrir mão do papel formador. Porque são esses estudantes que vão desenvolver essa consciência de que isso é uma violência, de que nós precisamos evoluir, de que nós precisamos ressignificar o papel, os papéis e demonstrar para eles que homens e mulheres podem ser diferentes na sua constituição física, mas ambos têm direito. São pessoas de direito e que todas merecem respeito e que a gente precisa primar por uma sociedade que respeite o ser humano na sua integralidade. Então assim, não há como a gente não tratar seja da violência doméstica, seja do racismo, seja do feminicídio no espaço da sala de aula”, salientou.
Embora existam mecanismos como equipes psicossociais encaminhadas pela Secretaria Estadual de Educação, as escolas continuam sobrecarregadas. “Não são todas que têm essas equipes. Os casos mais graves são encaminhados, mas a demanda é imensa.”
Para ela, a solução se inicia na formação cidadã desde a infância — preparando educadores, acolhendo alunos e promovendo espaços de escuta.
Para a educadora, a cultura machista é o âmago da questão. “Há uma construção social e cultural que banalizou a vida das mulheres ou que está banalizando a vida das mulheres. Porque quando você tem mais de 28 mulheres assassinadas no estado de Mato Grosso só de janeiro ao mês de junho, é porque está dizendo você não é importante pra sociedade ou a sua vida não vale nada. Na minha avaliação é isso e passa por essa coisa de tratar a mulher como objeto, como um ser insignificante, porque do contrário, se algo é importante para você ou se uma pessoa é importante para você, você não vai praticar violência contra ela, você não vai matá-la. Quando a gente vive esse cenário, eu acredito que passa por esse processo primeiro de uma cultura de machismo que está se manifestando nessa sociedade e que não se importa com a vida do outro, muito menos com a vida das mulheres”, reforçou.
Maria Celma diz que o papel dos movimentos sociais é de fundamental importância para promover o debate necessário e provocar a transformação que se almeja, com uma sociedade menos violenta para as mulheres.
“Não podemos desistir. É o debate que gera leis, políticas públicas, mudanças reais. Esse é o ponto de partida.”
Evidências que reforçam a urgência de enfrentar o problema
A Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (PeNSE, 2015) identificou que 14,5% dos estudantes do 9º ano relatam violência intrafamiliar, número que sobe entre meninas e entre alunos da rede pública;
Levantamento feito pela Revista Pesquisa Fapesp, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, aponta um preocupante crescimento da violência no ambiente escolar: o número de vítimas de agressões (incluindo estudantes, professores e funcionários) subiu de 3,7 mil em 2013 para 13,1 mil em 2023;
Segundo o Atlas da Violência, entre estudantes do ensino fundamental das capitais, aqueles que relataram agressão por familiares aumentaram de 9,5% em 2009 para 16,1% em 2019;
A literatura especializada registra que crianças expostas à violência doméstica frequentemente apresentam baixo desempenho escolar, isolamento, agressividade, ansiedade e falta de motivação, comprometendo sua trajetória educacional e emocional.
Assista à entrevista na íntegra: