Morto em pé, como as árvores, o bispo emérito de São Félix do Araguaia, Pedro Casaldáliga deixou a todos nós um legado, como flores e frutos, de luta intransigente por aqueles que mais precisam, um exército imenso no Brasil, o segundo país mais desigual de todo o planeta. Ao longo de mais de cinco décadas vivendo na terra que adotou e pela qual foi adotado, o religioso fez da sua existência um exemplo de que a luta por uma sociedade mais justa e fraterna não pode acabar.
A semente
A luta que marcou a existência de Casaldáliga, parte mais visível e vibrante de sua biografia, tem como base sua formação religiosa, ainda na Espanha, onde viveu até 1968, quando completou 40 anos. Logo aos 15 anos, decidiu ingressar na Ordem Claretiana, não coincidentemente fundada por um sacerdote com a mesma profissão de vida, Antônio Maria Claret, que em nome dessa luta chegou a sofrer um atentado.
Até 1952, quando foi ordenado sacerdote, carregou em seu aprendizado o lema da ordem, “Para iluminar o mundo inteiro em fogo com o amor de Deus”. Diretor de uma revista, professor em um colégio e assessor de cursilhos, Dom Pedro recebeu sua maior missão em 1968, ir ao Brasil, país envolto em uma sangrenta Ditadura Militar, dar continuidade ao trabalho de Claret.
Não bastasse a escolha pelo país sulamericano, Casaldáliga escolheu uma das regiões mais conflituosas à época, o Araguaia, que contrastava a riqueza de sua terra com a pobreza, o analfabetismo e a marginalização social de muitos que ali viviam.
“Por meu povo em luta, vivo”
Medo e Dom Pedro Casaldáliga nunca se misturaram. Desde o início de sua trajetória no Brasil, viveu na prática uma de suas mais belas frases. “Só vivendo a noite escura dos pobres, é possível viver o Dia de Deus. As estrelas só se veem de noite”. Ao contrário de outros clérigos, adotou como sua indumentária trajes que o misturavam ainda mais aos seus, chamando muito a atenção o trio inseparável formado pelo chapéu de palha, o cajado indígena e um anel de tucum.
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Em 1972, já nomeado bispo prelado de São Félix do Araguaia, Dom Pedro ajudou a fundar o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), entidade que serviu de contraponto ao projeto do governo militar que, por meio de obras de infraestrutura, pretendia integrar os indígenas à sociedade, tratando esta possibilidade como a única possível.
Entender essa diversidade cultural colocou muitas vezes o bispo em uma situação antagônica à igreja católica. Para ele, unidade não podia ser sinônimo de centralização.
Bispo do povo
Escolher este lado, o daqueles que mais precisam, custou caro ao bispo. Ameaças contra sua vida, algumas bem sérias, fazem parte da sua biografia. A mais grave, em 12 de outubro de 1976, ocorreu em Ribeirão Cascalheira.
Ao ser informado que duas mulheres estavam sendo torturadas na delegacia local, dirigiu-se até lá acompanhado do padre jesuíta João Bosco Penido Burnier. Após forte discussão com os policiais, o padre Burnier ameaçou denunciá-los às autoridades, sendo então agredido e, em seguida, alvejado com um tiro na nuca. Após a missa de sétimo dia, a população seguiu em procissão até a porta da delegacia, libertando os presos e destruindo o prédio. Naquele lugar foi erguida uma igreja.
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Além das ameaças contra sua vida, Dom Pedro era monitorado pelo regime militar e foi alvo de pelo menos cinco processos de expulsão do país. A saída do religioso do Brasil só não foi sacramentada por intervenção do Papa Paulo VI.
“O nosso DNA mais profundo é a esperança”
A reabertura política do Brasil não arrefeceu o ânimo e a disposição de Casaldáliga para lutar pelos mais pobres. A diferença, segundo afirmou em uma de suas memoráveis entrevistas, é que hoje é possível denunciar as injustiças e algumas delas são investigadas.
Para o religioso, o Brasil continuará uma sociedade arcaica enquanto houver proteção ao latifúndio. “E temos todas as possibilidades de organizar uma reforma agrária. Não vai ser fácil, não é de um dia para o outro, mas não se imaginava o MST na década de 1960, por exemplo”.
Em 2005, já sofrendo com a doença de Parkinson, renunciou à prelazia, mas nunca à luta. Tanto que em 2012 teve que sair de São Félix do Araguaia por ameaças detectadas pela Polícia Federal por conta do processo de desocupação da Terra Indígena de Marãiwatséde.
“Tudo cabe em uma oração”
Se as atitudes já não servissem como lição para a sociedade, Dom Pedro Casaldáliga deixou uma rica história em mais de 26 livros, todos voltados para a sociologia e a antropologia. “Quem fica na floresta um dia, quer escrever uma enciclopédia; quem passa 5 anos, fica em silêncio para perceber o quanto é profunda e complexa a Criação“.
Já na fase final da vida, Dom Pedro deixou uma importante lição. “Na minha idade, tudo cabe em uma oração. Hoje, já aposentado, contemplo a vida relativizando o que é relativo em mim, na sociedade e na Igreja, e absolutizando o que é absoluto: Deus e a humanidade”.