Em uma audiência pública de rara contundência no Supremo Tribunal Federal (STF), conduzida pelo ministro Flávio Dino no final de junho, uma voz se ergueu em nome dos governadores para diagnosticar uma das mais graves patologias da administração pública brasileira contemporânea. O governador de Mato Grosso, Mauro Mendes, não usou de meias-palavras para descrever o sistema de emendas parlamentares impositivas como uma "anomalia" que distorce a função do Legislativo, corrói a eficiência do Estado e transforma o orçamento da União – um instrumento que deveria ser técnico e estratégico – em um balcão de negócios políticos de R$ 50 bilhões anuais.
A fala de Mendes no coração do Judiciário brasileiro serve para iluminar um desvio de rota constitucional que, silenciosamente, sequestrou a capacidade de planejamento do Poder Executivo. O Congresso Nacional, cuja função primordial é legislar e fiscalizar, abdicou de seu papel estratégico para se tornar um gestor fragmentado e paroquial de verbas públicas, em uma clara e perigosa invasão de competência.
Eficiência esquecida e obras que não se veem
A análise do governador parte de uma constatação alarmante: o problema, antes restrito a Brasília, metastatizou-se. "Esse assunto começa a se espalhar por todo o Brasil, nas esferas estadual e municipal", alertou Mendes, citando o exemplo de seu próprio estado, Mato Grosso, onde já foi criada por simetria uma obrigação de 2% da receita para emendas estaduais. Essa "capilaridade" do problema demonstra como um arranjo federal está redesenhando a lógica orçamentária em toda a federação, com potencial para alcançar os mais de 5.500 municípios.
O ponto central da crítica de Mendes reside na violação de um princípio constitucional basilar, introduzido na Carta de 1988 e reforçado em 1998: o princípio da eficiência. "Grande parte da administração pública deste país esqueceu de aplicar esse princípio", lamentou. A eficiência não é uma sugestão, mas um mandamento constitucional (Art. 37) que exige do gestor público a busca pelos melhores resultados com o menor custo. No entanto, o modelo atual de emendas vai na contramão dessa lógica.
A provocação lançada por Mendes é demolidora: com um montante de R$ 50 bilhões, "desafio a identificar quais as obras estruturantes e os impactos relevantes que essa cifra produziu no país". A resposta é implícita e desoladora. O dinheiro, em vez de ser concentrado em projetos estratégicos de grande impacto – como ferrovias, portos, saneamento básico em larga escala ou centros de pesquisa de ponta –, é pulverizado em milhares de pequenas intervenções. São obras de baixo impacto, muitas vezes sem planejamento técnico adequado e cuja principal justificativa é o retorno eleitoral para o parlamentar proponente. Como bem destacou o governador, essas emendas "têm servido, muitas vezes, como um instrumento da gestão política e de interesses eleitorais, em detrimento dos interesses da sociedade".
Invasão de competência e a abdicação do dever de legislar
Do ponto de vista jurídico, o sistema de emendas impositivas representa flagrante violação do princípio da separação dos poderes (Art. 2º da Constituição Federal). A Carta Magna é clara ao definir os papéis de cada poder. Ao Poder Legislativo cabe a nobre função de criar o arcabouço legal do país e fiscalizar os atos do Executivo. Ao Poder Executivo, por sua vez, cabe a função de administrar, governar e, crucialmente, executar o orçamento.
Quando um parlamentar define não apenas o que fazer (uma obra), mas onde (em seu reduto eleitoral), como (muitas vezes sem estudo técnico de viabilidade) e por quanto (o valor da emenda), ele está, na prática, exercendo uma função executiva. Ele se transforma em um "mini-prefeito" ou "mini-governador", dando um “by-pass” em toda a cadeia de planejamento técnico dos ministérios e secretarias, que deveriam ser os responsáveis por alocar os recursos com base em critérios de necessidade pública, e não de conveniência política.
A consequência mais perversa dessa distorção é a que Mauro Mendes apontou com precisão: o esvaziamento da própria função legislativa. O Congresso Nacional, consumido pela "busca incessante por emendas parlamentares", deixa de lado suas responsabilidades primordiais. "O Código Penal Brasileiro de 1940 é um exemplo disso, em um momento em que o país enfrenta um aumento da violência", criticou Mendes. Enquanto o país clama por reformas estruturais – tributária, administrativa, política – e pela modernização de leis anacrônicas, o tempo e a energia parlamentar são drenados para a negociação de verbas. O debate sobre um déficit previdenciário de R$ 416 bilhões, mencionado pelo governador, é preterido em favor da discussão sobre a alocação de uma quadra poliesportiva ou a compra de uma ambulância. O Parlamento abdicou de pensar o Brasil para se ocupar do varejo.
O argumento jurídico e a falácia do "protagonismo" do Legislativo
Defensores do modelo atual argumentam que as emendas impositivas fortalecem o Legislativo e garantem que as necessidades da "ponta" sejam ouvidas. Trata-se de uma falácia perigosa. O protagonismo do Legislativo se manifesta na qualidade das leis que produz e na robustez da fiscalização que exerce, não na sua capacidade de executar o orçamento.
A transformação das emendas em impositivas, a partir de 2015, representou o ápice dessa distorção. Antes, as emendas eram autorizativas, ou seja, o Executivo tinha a discricionariedade para executá-las ou não, com base em critérios de viabilidade técnica e financeira. A obrigatoriedade da execução retirou do governo a capacidade de gerir o orçamento, engessando as finanças públicas e forçando a liberação de recursos para projetos de baixa prioridade ou até mesmo inviáveis.
Essa lógica culminou na aberração do "orçamento secreto" (emendas de relator - RP-9), declarado inconstitucional pelo STF justamente por sua falta de transparência, critério e isonomia. Embora o mecanismo tenha sido extinto, o espírito que o animava persiste nas emendas individuais e de bancada: a alocação de recursos públicos com base em critérios políticos e não técnicos, violando os princípios da impessoalidade e da moralidade administrativa.
O alerta do colapso e o caminho para a racionalidade
O cenário futuro pintado por Mendes, ecoando alertas do Tribunal de Contas da União (TCU), é sombrio: um possível colapso fiscal até 2027. A rigidez orçamentária imposta pelas emendas, somada a outras despesas obrigatórias, asfixia o Estado e elimina qualquer margem para investimentos estratégicos ou para o enfrentamento de crises. O sistema, como está, é uma bomba-relógio fiscal.
A solução não passa por eliminar a participação do Legislativo na discussão orçamentária, mas por devolvê-la ao seu devido lugar. A proposta de Mendes e do próprio ministro Flávio Dino aponta para o caminho correto: regras claras e rastreabilidade total dos recursos. É preciso superar o modelo de "cheque em branco" e criar mecanismos que condicionem a liberação das verbas à apresentação de projetos tecnicamente sólidos e alinhados a um plano nacional de desenvolvimento.
O Congresso Nacional precisa ser instado a reencontrar sua vocação. Seu papel é debater e aprovar um Plano Plurianual (PPA) robusto, uma Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) coerente e uma Lei Orçamentária Anual (LOA) que reflita as verdadeiras prioridades do país, e não um somatório de interesses paroquiais. O parlamentar deve fiscalizar se o hospital prometido pelo governo foi entregue com qualidade, e não usar sua influência para decidir a cor da parede do posto de saúde de sua cidade natal.
O grito de Mauro Mendes no STF não foi apenas a queixa de um governador; foi a tradução lúcida de um sequestro institucional. O Brasil precisa urgentemente resgatar seu orçamento das mãos do clientelismo político e devolvê-lo à racionalidade técnica e ao planejamento estratégico. Do contrário, como bem advertiu o governador, continuaremos a ser o eterno "país do futuro", seguindo a "mesma direção não recomendável dos últimos anos", onde R$ 50 bilhões se esvaem a cada ano sem deixar um legado de desenvolvimento real para a sociedade brasileira. A hora de corrigir essa anomalia é agora.