Numa típica tarde cuiabana, tive o privilégio de mergulhar em uma conversa que transcendeu os limites de uma simples entrevista. Sentado à minha frente, com a serenidade de quem já navegou por mares turbulentos e a clareza de quem enxerga a complexidade da alma humana, estava o delegado Mário Demerval. Em 45 minutos que se estenderam como horas de profunda reflexão, Demerval, com 24 anos de dedicação à Polícia Civil de Mato Grosso, desnudou não apenas uma carreira marcada por desafios extremos, mas a essência de um projeto que se ergue como um farol de esperança na escuridão da violência doméstica: o "Papo de Homem pra Homem".
Essa conversa, que mais tarde se transformaria em um programa de televisão e agora é o coração desta reportagem especial para o projeto "AMOR SEM MEDO" – uma iniciativa multimídia e multiplataforma dedicada a iluminar os caminhos da prevenção e combate ao feminicídio e à violência contra a mulher neste Agosto Lilás – revelou um aspecto da segurança pública que vai além da repressão: a capacidade de transformar. Não se trata apenas de prender agressores, mas de desconstruir o agressor, de reeducar o indivíduo, de resgatar a humanidade onde ela parece ter se perdido.
O homem por trás do distintivo
Mário Demerval não é um delegado comum. Sua trajetória na Polícia Civil é um testemunho de coragem e resiliência. Em seus 24 anos de serviço, ele não apenas patrulhou as ruas e desvendou crimes em cidades grandes; ele enfrentou a brutalidade do crime organizado e o tráfico internacional nas inóspitas regiões de floresta e fronteira do Brasil com a Bolívia. Imagine a complexidade e o perigo de viver com a família – mulher e filhos – em um cenário tão volátil, onde a linha entre a lei e a ilegalidade se esboroa em meio à vegetação densa e às rotas clandestinas do tráfico.
Essa vivência na linha de frente, no olho do furacão do crime, forjou não apenas um policial tático e estratégico, mas um observador perspicaz da condição humana. Sua passagem pela Corregedoria de Polícia Civil, pela Gerência de Combate ao Crime Organizado, culminando na posição de Delegado-Geral da PJC, não foi por acaso. Cada degrau em sua carreira foi pavimentado por uma rara combinação de inteligência, integridade e uma compreensão profunda das dinâmicas sociais que alimentam a criminalidade. É dessa experiência multifacetada que emerge a sensibilidade para abordar a violência doméstica não apenas como um delito, mas como um problema intrincado, com raízes profundas na cultura e na psique. Demerval, o homem que enfrentou os perigos mais óbvios da fronteira, dedica-se, também, a desvendar e curar as feridas mais íntimas e ocultas dos lares.
A gênese de uma ideia
Como toda grande ideia, o "Papo de Homem pra Homem" brotou de uma semente simples, quase despretensiosa. Em 2014, sob a coordenação do delegado Cláudio Alvarez, a Polícia Comunitária, um setor da Polícia Civil focado na ação preventiva e nos grupos de reflexão – inicialmente dedicados à prevenção às drogas em escolas – viu nascer o embrião do que viria a ser o projeto. Um posto de gasolina, um grupo de caminhoneiros e a necessidade latente de um espaço para diálogo. Foi ali, em um ambiente tão prosaico, que o primeiro “laboratório de prática” de um diálogo entre homens começou, antes mesmo de ter um nome formal.
A iniciativa, embrionária e promissora, seria formalmente reativada em 2019, coincidindo com a ascensão de Mário Demerval ao comando da Polícia Judiciária Civil de Mato Grosso como Diretor-Geral. Era o momento ideal. Sob sua liderança, o projeto não apenas ganhou nome e identidade, mas também um impulso institucional. O passo decisivo viria em 2021, com a celebração de um termo de cooperação com o Tribunal de Justiça. Essa parceria elevou o "Papo de Homem pra Homem" de uma iniciativa louvável a uma ferramenta oficial e integrada no sistema de justiça, dando-lhe a força e a legitimidade necessárias para impactar de forma mais ampla e eficaz.
A partir desse marco, o projeto se consolidou. Mensalmente, entre trinta e quarenta homens, sob determinação judicial, reúnem-se com a equipe da Polícia Comunitária. Mas não estão sozinhos. A estrutura é multidisciplinar e robusta, contando com a presença de médicos, juízes, promotores e outros policiais civis, além de advogados e defensores. Essa rede de profissionais, homens e mulheres, atua como um farol, iluminando os caminhos da reflexão e da reeducação. O objetivo primordial, como Demerval ressaltou, é um só: evitar a reincidência da violência.
A jornada de 15 horas rumo à consciência
A participação no "Papo de Homem pra Homem" não é uma opção para a maioria dos frequentadores. É uma imposição judicial, uma etapa coercitiva para aqueles que tiveram medidas protetivas expedidas contra si. Para esses homens, a presença é um pré-requisito para que a medida não seja violada; a ausência pode significar a decretação imediata da prisão. É nesse cenário de obrigatoriedade inicial que se desenrola uma jornada de quinze horas, distribuídas ao longo de três dias. Uma jornada que, para muitos, se inicia com resistência e culmina em uma rara e surpreendente gratidão.
O primeiro dia é, como descreve Demerval, um período de “extremo inconformismo”. A hostilidade, a negação, a vitimização são sentimentos comuns. São homens que, compelidos pela ordem judicial, chegam à mesa de diálogo com as defesas erguidas, as narrativas prontas para justificar seus atos ou minimizar suas responsabilidades. A Polícia Civil e os demais profissionais abordam-nos com clareza, mas sem julgamento, sem "apontar o dedo", focando nos fatos e nas consequências da violência.
O segundo dia é um divisor de águas. O ambiente, antes tenso e combativo, se transmuta em um espaço de silêncio e introspecção. O bombardeio de informações do primeiro dia, as palestras, as discussões, começam a permear as defesas. "Diante de tudo que se passou no primeiro dia, eles já começam a entender que realmente cometeram um erro", observa o delegado. É a fase da reflexão, onde a verdade, por vezes dolorosa, começa a se infiltrar nas camadas de negação e justificativa. A semente da mudança é plantada.
A última jornada é a mais recompensadora. A transição é "unânime". Os homens, antes relutantes e inconformados, demonstram-se "muito satisfeitos e agradecidos". É um momento de epifania coletiva, onde a ficha parece finalmente cair. A questão que ressoa em coro, uma pergunta que ecoa a transformação vivenciada, é a mais reveladora: "Por que a instituição, a Polícia Civil, não pratica esse papo fora desse universo, abrangendo homens que sequer cometeram qualquer tipo de violência?" Essa indagação, para Demerval, é a prova cabal do impacto do projeto. Homens que entraram coagidos, saem desejando que outros, antes que cometam os mesmos erros, tenham a mesma oportunidade de conscientização.
A ambição de uma política de Estado
A pergunta recorrente dos participantes – a vontade de que o "Papo de Homem pra Homem" alcance um público mais amplo, preventivamente – ecoa um desejo do próprio delegado Demerval. A expansão do projeto, contudo, esbarra em desafios estruturais. "É muito complicado porque a nossa estrutura é pequena, e o caráter da Polícia Civil, o caráter investigativo, nosso efetivo é sempre apertado", reconhece. A natureza de sua instituição, focada na investigação e repressão, naturalmente limita a escala de iniciativas preventivas e educacionais.
Apesar das limitações, a visão de expansão não foi abandonada. O projeto já busca horizontes para além do universo judicialmente compelido. A iniciativa tem sido ampliada para "canteiros de obras de grandes construtoras" e, em um movimento estratégico, está se espalhando para o interior do estado, vinculada às medidas protetivas regionais. O próximo passo ambicioso é a entrada em presídios. "Estamos em plena tratativa com o sistema prisional para que possamos atender, orientar e mudar a mente desses homens, para que realmente valorizem seus lares, suas esposas e, caso já tenham tido problemas, que não voltem a delinquir, cometendo os erros do passado", revela Demerval. Essa incursão no ambiente prisional é vital, mirando um público de alta vulnerabilidade à reincidência e com um histórico de violência muitas vezes arraigado.
Mato Grosso: o campeão que sangra
A conversa com o Delegado Demerval inevitavelmente nos levou a uma realidade sombria, uma contradição gritante no coração do Brasil: Mato Grosso, celeiro da nação, campeão em produção de grãos e fibras, é também um dos estados com índices alarmantes de violência contra a mulher e feminicídio. "Proporcionalmente, é um absurdo", afirma. A estatística é brutal: "nos últimos trinta dias registramos cerca de vinte e nove feminicídios em Mato Grosso", disse ao se referir ao mês de junho. Esses números, que deveriam chocar, muitas vezes se diluem na frieza das manchetes, mas representam vidas ceifadas, famílias dilaceradas e uma mácula profunda na identidade do estado.
A complexidade da violência doméstica, seja ela psicológica, patrimonial, física, sexual ou moral, culminando no extremo do feminicídio, desafia as explicações simplistas. "Por que os homens se comportam dessa maneira, reiteradamente?", questionei. Demerval aponta para uma questão cultural, mas a resposta é mais multifacetada do que um único rótulo. A dificuldade em encontrar uma razão única reside na teia de fatores que se entrelaçam: "Mauro, é importante destacar que atendemos quatrocentos homens por ano no Papo de Homem para Homem, e graças a Deus podemos dizer que o resultado é eficiente, pois a reincidência não ultrapassa cinco por cento, e nunca houve um frequentador que cometeu feminicídio posteriormente a ter participado de nossas oficinas." Este dado, um raio de sol em um cenário de densas nuvens, valida a eficácia do projeto.
A crença de que os índices de violência doméstica "vão sempre estar subindo, infelizmente", para Demerval, não é um sinal de derrota, mas de um avanço na capacidade de detecção e denúncia. Ele atribui esse aparente aumento a um fenômeno crucial: a subnotificação que, no passado, mascarava a real dimensão do problema. "As mulheres hoje têm mecanismos que no passado não tinham", explica. A tecnologia – boletim de ocorrência por celular, solicitação de medida protetiva eletrônica, o botão do pânico – empoderou as vítimas de forma inédita. Há uma década, esses recursos eram impensáveis.
Além disso, a implementação de "plantões de vinte e quatro horas para atender mulheres" a partir de 2019, com policiais especialmente treinados, abriu portas que antes estavam fechadas. A intensa campanha de conscientização, visível em "outdoors e propagandas no rádio, estimulando as mulheres a denunciarem seus agressores", contribuiu para que o que era "subnotificado agora passou a ser" registrado. Mato Grosso, em sua "plena expansão", com o influxo de "mais gente, mais dinheiro e mais oportunidades", paradoxalmente, também vê surgir "mais problemas", e a violência doméstica se destaca entre eles.
Drama da modernidade e as raízes da agressão
O feminicídio, segundo o delegado Demerval, é "o grande problema da modernidade". Ele o conecta diretamente à "frustração que muitos casais têm vivido", à "questão familiar e a falta de comunicação". Esse elo entre a esfera íntima do lar e a violência extrema é um dos aspectos mais complexos da pauta. Pequenas agressões, se não monitoradas e abordadas, têm o potencial devastador de "culminar em feminicídios". Daí a imperatividade de "monitorar e trabalhar a questão da violência doméstica".
As causas da violência, muitas vezes, residem em uma premeditação que nasce de distorções de comportamento e pensamento. Nos encontros do "Papo de Homem pra Homem", "homens expressam ciúmes ou afirmam que agiram de determinada maneira porque suas parceiras não os obedeceram". Essa lógica, profundamente enraizada, é uma manifestação do "machismo estrutural". Muitos desses homens, ao serem confrontados, revelam-se "extremamente deprimidos e tristes". A tarefa de abri-los, especialmente no primeiro dia, é árdua, mas com o tempo, a conscientização floresce: "muitos reconhecem seus erros e se tornam mais conscientes".
A cegueira inicial, a incapacidade de reconhecer a gravidade dos próprios atos, é um obstáculo comum. "Muitos dos que participam não consideram suas ações como crimes – no início". A violência, para eles, é uma reação, uma correção de rota, não uma transgressão. Mas o processo de reflexão os leva a uma revelação: "ao longo das conversas, eles percebem que realmente erraram". Essa percepção é a verdadeira recompensa do projeto. Não se trata apenas de evitar a reincidência, mas de catalisar uma mudança interna que se irradia. "Além de saírem com uma nova visão, muitos acabam orientando outras mulheres de suas famílias a buscar justiça, caso sofram violência", relata Demerval. É um ciclo virtuoso, onde o agressor reeducado se torna um agente de proteção.
A sociedade, muitas vezes, opta pela via do "ataque e culpabilização dos que cometem esses delitos", o que, na visão do delegado, "não resolve o problema". O "Papo de Homem pra Homem" propõe uma via alternativa, que, embora não isente o agressor de sua responsabilidade, busca "reintegrar esses homens de volta à sociedade" por meio da conscientização e da transformação. O desafio, contudo, é vasto, e as causas da violência são multifacetadas, aprofundadas por um panorama social cada vez mais complexo.
Desconexão digital e o imperativo da empatia
A modernidade, com sua "vida online e a desconexão dos relacionamentos face a face", paradoxalmente, gerou "um cenário crítico que pode intensificar problemas". A facilidade da comunicação digital não se traduziu em maior compreensão e empatia; ao contrário, assistimos a uma "época em que as frustrações e a violência não param de crescer, enquanto a compreensão e a empatia estão se distorcendo". A falta de comunicação familiar, as pressões sociais e a persistência da cultura machista servem como catalisadores para um drama que se desenrola nos lares de Mato Grosso e do Brasil.
A complexidade da violência contra as mulheres exige um trabalho contínuo e multifacetado. A visão de Demerval, que ecoa a pergunta dos participantes, é que o "Papo de Homem pra Homem" deveria transcender o âmbito da Polícia Civil e se tornar uma "política de Estado". Sua ampliação para "escolas, igrejas e clubes de serviço" é um desejo ardente, um reconhecimento de que a prevenção da violência deve começar "desde as bases", com foco na "orientação e mudança de comportamento".
Um chamado à transformação contínua
A entrevista com o Delegado Mário Demerval não foi apenas uma conversa; foi uma imersão na realidade de Mato Grosso, um convite à reflexão sobre a violência doméstica e uma demonstração inspiradora de como a Polícia Judiciária Civil, através de seus agentes e projetos inovadores, busca não apenas punir, mas transformar. O "Papo de Homem pra Homem" é mais do que um programa; é uma filosofia que se propõe a quebrar ciclos de violência, a desconstruir a agressão e a reconstruir lares.
A essência do projeto "AMOR SEM MEDO" reside justamente nessa crença: a de que a mudança é possível. A luta contra o feminicídio e a violência contra a mulher não se vence apenas com leis e prisões, mas com educação, com diálogo, com a coragem de confrontar comportamentos arraigados e de oferecer caminhos para a redenção. A jornada de Mário Demerval, de delegado de fronteira a artífice de um projeto de reeducação, simboliza a esperança de que, através do diálogo e da conscientização, é possível construir um futuro em que o amor, de fato, não tenha medo.
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Veja a entrevista na íntegra: