Seu nome era um rio, Cibáe Modojebádo, e corria livre pelas terras ancestrais de seu povo, os Bororo Coroado, guerreiros indomáveis do vasto e selvagem Mato Grosso. Mas o homem branco, em sua sede de progresso, não ouve o rio; ele constrói represas. E em 1880, o rio da vida de Cibáe foi violentamente represado. Uma expedição do governo da província, com a missão de subjugar os Bororo que ousavam resistir ao avanço sobre suas terras, a capturou. Junto com suas duas filhas, ela foi arrancada de seu mundo e levada para Cuiabá.
Na capital dos brancos, seu nome foi roubado. Após um batismo forçado, que lavou sua identidade, mas não sua alma, ela se tornou "Rosa". Apenas Rosa. Uma flor exótica para ser "criada e educada" pela família de Thomaz Antonio de Miranda, que recebia um pagamento do Estado para domesticar a "selvagem". Rosa Bororo. A flor e o povo, um nome que era em si mesmo uma contradição, uma cicatriz.
Ela não sabia, mas sua captura era parte de um plano sinistro. As terras de seu povo eram um obstáculo para a construção de uma estrada que ligaria Mato Grosso ao progresso de São Paulo e Minas Gerais. A resistência Bororo era um atraso. Após anos de lutas sangrentas e infrutíferas, a estratégia colonial se tornou mais sutil, mais cruel: a "pacificação". A ideia era usar os próprios indígenas capturados, transformados em ferramentas dóceis, para convencer seus parentes a se renderem, a abandonarem sua cultura, a entregarem suas terras.
A Rosa que os brancos criaram era uma flor de estufa, dócil e ornamental. Mas as raízes de Cibáe eram profundas, selvagens, fincadas na terra vermelha de seu povo. Em 1886, na primeira expedição de pacificação, ela foi forçada a participar do teatro da traição. Teve que tirar suas vestes de "civilizada", pintar o corpo com o urucum vermelho de seus ancestrais e ir até sua antiga aldeia para ser a isca. A dor de olhar nos olhos de seus irmãos, sendo um arauto de sua própria desgraça, é um sentimento que a história não registrou, mas que podemos imaginar. Naquele dia, 28 Bororo foram capturados, levados para o abraço sufocante da "civilização".
Mas na segunda expedição, no mesmo ano, o rio represado rompeu a barragem. A mulher Bororo despertou dentro da Rosa dos brancos. Ao chegar à aldeia, ela se recusou. Negou-se a ajudar no aprisionamento, tentou interferir na negociação, tentou proteger os seus do destino que ela conhecia tão bem. Sua resistência foi um ato de coragem desesperado, mas inútil contra a força implacável da máquina colonial. Quatrocentos e trinta membros de seu povo foram convencidos a abandonar suas terras e conduzidos a um pequeno aldeamento militar em Cuiabá, um campo de concentração disfarçado.
Diante da tragédia consumada, diante de seu povo despojado de tudo, Rosa tomou sua decisão final. Ela abandonou a vida entre os colonizadores. Rejeitou o nome que lhe foi imposto, a casa que a aprisionou, a "civilização" que a usou como arma. Ela voltou para junto dos seus. Voltou para o pequeno pedaço de terra que lhes restava, para compartilhar seu destino de miséria e resistência. Naquele momento, ela matou a Rosa dos brancos para que Cibáe Modojebádo pudesse viver novamente, livre em sua alma, ainda que cativa em seu território.
Por muito tempo, a história oficial, contada pelos vencedores, tentou pintar Rosa como uma heroína da pacificação, uma aliada que ajudou a "domesticar" seu povo. Mas a verdade, resgatada do esquecimento, revela uma heroína de outra estirpe. Rosa Bororo foi uma mulher que, mesmo sob a mais terrível coação, escolheu a lealdade à sua identidade. Se ela foi uma heroína, foi uma heroína Bororo, cuja vida é um símbolo potente da resistência indígena e um testemunho da violência histórica que tentou, mas jamais conseguiu, apagar a força de sua alma.
Mãe Bonifácia - a matriarca do quilombo invisível de Cuiabá
Nas frestas empoeiradas da história oficial de Mato Grosso, onde os grandes feitos eram cronicados com nomes de homens e patentes militares, a figura de uma mulher negra, curandeira e líder se recusa a ser esquecida. Seu nome ecoa como um sussurro ancestral nas ruas de Cuiabá: Mãe Bonifácia. Sua história, envolta em mistério e transmitida pela força da oralidade, é o retrato de uma resistência que floresceu muito antes de o feminismo ter um nome, em uma terra selvagem e marcada pela brutalidade da escravidão.
Imaginemos a Cuiabá do início do século XIX. Um vilarejo isolado no coração do Brasil, onde o ouro já não brilhava com a mesma intensidade, mas a ganância e a violência ainda ditavam as regras. Nesse cenário, Bonifácia, uma mulher nascida por volta de 1780, não era apenas uma curandeira que conhecia os segredos das ervas do Cerrado. Ela era um porto seguro. Sua casa, no bairro do Porto, era mais do que uma morada; era um território de liberdade, um quilombo invisível no coração da cidade, onde escravos fugitivos encontravam abrigo, comida e a proteção de uma matriarca.
Sua liderança não vinha de um título, mas da sabedoria que seus olhos carregavam e da força que suas mãos emanavam. Em uma sociedade que desumanizava os negros e subjugava as mulheres, Bonifácia era uma autoridade. Ela desafiava a ordem vigente não com armas, mas com afeto, com cuidado, com a coragem de proteger os seus. Cada fugitivo que ela acolhia era um ato de rebeldia, uma fenda no sistema escravocrata.
A tensão em Cuiabá explodiu em 1834, na sangrenta Revolta da Rusga. Um levante popular que, embora complexo, trazia em seu bojo o ressentimento contra a opressão. E, segundo a memória popular, foi na casa de Mãe Bonifácia, sob sua bênção e seu apoio estratégico, que parte dessa revolta foi gestada. Ela não pegou em armas, mas sua influência foi a munição espiritual e moral para muitos dos que lutaram. Ela representava a voz dos que não tinham voz, a força dos que eram considerados fracos.
O legado de Mãe Bonifácia não está em documentos oficiais, mas na alma de Cuiabá. Ela se tornou um mito, uma lenda que personifica a resiliência da mulher negra, a força da ancestralidade e a coragem de lutar contra a injustiça. O parque que hoje leva seu nome é mais do que uma homenagem; é o reconhecimento de que a história de Mato Grosso também foi escrita por mulheres como ela, cujas vidas foram um ato de amor e resistência, uma dádiva de esperança em tempos de escuridão.
Tereza de Benguela - a rainha negra que forjou um reino de liberdade no coração da selva
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  No século XVIII, ela habitava o território correspondente ao atual estado do Mato Grosso e, por ao menos 20 anos, chefiou o Quilombo do Quariterê
Tereza de Benguela não era seu nome. O nome que sua mãe lhe sussurrou ao nascer, em algum lugar da vastidão africana por volta de 1720, perdeu-se no vento salgado do Atlântico, afogado pelo choro e pelo estalar do chicote no porão de um navio negreiro. Ou talvez tenha se perdido no pó das minas de Mato Grosso. A história, escrita pelos vencedores, é imprecisa sobre suas origens, mas implacável em seu destino inicial: ser escravizada. O nome que lhe impuseram era uma marca, uma referência geográfica de sua suposta origem ou do porto de onde partiu para o inferno. Mas Tereza, com a força que só os despossuídos conhecem, transformaria essa marca de servidão em um título de realeza.
Sua jornada a levou para o coração selvagem do Brasil Colônia, para o Vale do Guaporé, na fronteira com a Bolívia, uma terra de ouro, febre e violência. Ali, sob o jugo do capitão Timóteo Pereira Gomes, ela conheceu a brutalidade do sistema. Mas em seus olhos, ardia uma chama que a escravidão não conseguia apagar. Ela fugiu. Fugiu para um lugar que era, ao mesmo tempo, um refúgio e uma fortaleza: o Quilombo de Quariterê.
Quariterê não era um simples acampamento de fugitivos. Era uma sociedade organizada, um Estado negro cravado no coração do império português. Ali, sob a liderança de seu companheiro, José Piolho, Tereza encontrou um lar e um propósito. Mas o destino, que já lhe havia sido tão cruel, lhe impôs mais um golpe. Com a morte de José Piolho por volta de 1750, o quilombo poderia ter se esfacelado, mergulhado no caos. Mas foi nesse vácuo de poder que a verdadeira rainha se revelou.
A viúva assumiu o trono. E o Quariterê, sob o comando de Tereza, floresceu como nunca. Sua liderança não era suave; era forjada na necessidade da sobrevivência. Com um pulso de ferro, ela organizou um sistema de defesa formidável, com sentinelas e armas adquiridas em missões comerciais audaciosas. Ela sabia que a liberdade, para ser mantida, precisava ser defendida com unhas e dentes. Em um território infestado por bandeirantes e caçadores de escravos, a vigilância era o preço da paz.
Mas a Rainha Tereza não era apenas uma estrategista militar. Era uma estadista. Sob seu comando, o quilombo desenvolveu uma agricultura tão eficiente que, enquanto a capital da província, Vila Bela, passava fome, em Quariterê havia fartura. O excedente era trocado, não apenas por armas, mas por tecidos e ferramentas, em um sistema comercial que demonstrava uma sofisticação administrativa impressionante. Dizem que era alegre e vaidosa, que se adornava como a realeza que era, uma afronta à miséria que o sistema colonial a queria impor. Ela não apenas governava; ela reinava, com um parlamento onde os principais líderes se reuniam para tomar as decisões que selariam o destino de seu povo.
Um reino negro, próspero e livre era uma afronta intolerável para a Coroa portuguesa. O sucesso de Quariterê foi sua sentença de morte. Em 1770, uma expedição punitiva, fortemente armada, foi enviada para destruir aquele símbolo de resistência. O que aconteceu com a Rainha Tereza no clímax dessa batalha final é, mais uma vez, um campo de disputa, duas versões de um mesmo fim trágico e desafiador.
Uma vertente conta que ela foi capturada e, para não sentir novamente o gosto amargo da escravidão, suicidou-se. Um ato final de autonomia, a escolha da morte em vez da submissão, o corpo como o último território de liberdade. A outra, ainda mais brutal, narra que foi assassinada e sua cabeça, exposta em uma estaca no centro do quilombo arrasado. Um recado macabro do poder branco, uma tentativa de apagar não apenas a mulher, mas o símbolo que ela representava.
Mas eles falharam. Pois não se mata uma ideia. Não se decapita um legado. Tereza de Benguela, a mulher cujo nome de batismo foi roubado, tornou-se imortal. Ela é matriarca de uma nação invisível, a rainha de um reino de liberdade que existiu contra todas as probabilidades. Sua história, resgatada do esquecimento pela pesquisa de historiadoras como Bruna Myrtes Baldo, é hoje um pilar na construção de uma narrativa antirracista e feminista, um lembrete poderoso de que, muito antes de o Brasil se pensar como nação, uma rainha negra já construía, no coração da selva, um futuro em que a cor da pele não definia o destino, e a liberdade era o único ouro que realmente importava.
Nota sobre as Fontes da Pesquisa na WEB
A pesquisa complementar para a construção desta e das demais reportagens/crônicas da série baseou-se em uma triangulação de informações apuradas com o auxílio de IA e provenientes de fontes de alta credibilidade, incluindo:
Fontes Acadêmicas e Históricas:
* A dissertação "Mulheres de Mato Grosso: A utilização de biografias femininas no ensino da história", de autoria da professora e historiadora Bruna Myrtes Baldo (UFMT), serviu como guia primário e inspiração, especialmente para a história de Tereza de Benguela.
* Artigos e publicações disponíveis em portais acadêmicos como SciELO e Google Scholar, que abordam a história de Mato Grosso, a escravidão no Brasil Colônia e o movimento feminista no estado.
* Arquivos e publicações do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso (IHGMT) e da Fundação Cultural Palmares.
Fontes Governamentais e Legislativas:
Perfis biográficos e registros de atividades parlamentares disponíveis nos sites oficiais da Assembleia Legislativa de Mato Grosso (ALMT), do Senado Federal e da Câmara dos Deputados.
Acervos de Mídia e Imprensa:
Arquivos de jornais de circulação nacional (Folha de S.Paulo, O Globo, Estadão) e de veículos de imprensa de Mato Grosso (como A Gazeta e Diário de Cuiabá) para apurar fatos, datas e o contexto histórico e político de cada época.
Bancos de Dados Biográficos e Culturais
Consulta a enciclopédias e dicionários biográficos de referência, como o Dicionário de Mulheres do Brasil e o portal "Memórias da Ditadura", para checagem e aprofundamento de informações sobre a vida e obra das personalidades retratadas.
    




