É um silêncio povoado de dúvidas, medo e uma solidão lancinante, mesmo quando se tem companhia. Foi nesse território mudo e devastador que a hoje escritora Tatiana Poletti viveu por quase dois anos. E foi de lá, com a força de quem ressurge das próprias cinzas, que ela emergiu não apenas para recuperar a própria voz, mas para amplificá-la em um coro que hoje ecoa para milhares de outras mulheres.
Em uma conversa sincera e reveladora para o programa Nossa República, veiculado pela TV Pantanal, pelo nosso portal e pelo YouTube, tive o privilégio, ao lado do jornalista Dielcio Moreira, de mergulhar na jornada de Tatiana. A mulher que se conectou conosco por vídeo, com um olhar sereno e uma fala ponderada, é o resultado de uma profunda metamorfose. Sua história, materializada no livro "Ela não disse", é mais do que um relato de sobrevivência; é um manual de reconstrução, um farol para quem navega nas águas turvas da violência psicológica.
Mas para entender a dimensão da queda, é preciso primeiro conhecer o tamanho da mulher que quase foi derrubada.
O perfil de uma potência: quem é Tatiana Poletti?
Antes de ser a voz de um movimento, Tatiana Poletti construiu uma carreira sólida e invejável, um testamento de sua competência e determinação. Por 27 anos, ela foi uma figura proeminente no exigente e competitivo mercado financeiro. Não era uma coadjuvante. Ocupou cargos de alta liderança, como superintendente e diretora em algumas das maiores e mais respeitadas instituições do setor no país. Nesses ambientes, dominados por números, metas agressivas e uma pressão constante, ela não apenas sobreviveu, mas prosperou, comandando equipes e tomando decisões estratégicas de grande impacto.
Sua força, no entanto, não se resumia ao pragmatismo do mundo corporativo. Tatiana é uma intelectual inquieta, uma buscadora. Sua formação acadêmica é um mosaico que reflete sua curiosidade pela complexidade humana: graduada em Direito e Economia, ela não parou por aí. Mergulhou em campos como a Neurociência e a Psicologia Positiva, buscando entender as engrenagens da mente, do comportamento e da felicidade. Essa bagagem multidisciplinar lhe conferiu uma capacidade analítica rara, uma visão que conecta o racional ao emocional.
Era uma mulher que, aos olhos do mundo – e aos seus próprios –, parecia invulnerável. Independente financeiramente, mãe dedicada de uma filha, divorciada com uma relação amigável com o ex-marido, viajada, culta. "Eu me achava verdadeiramente imune a uma situação de relacionamento abusivo", confessou durante nossa entrevista. "Dado todo esse contexto e até os relacionamentos anteriores que já havia vivido, nunca tinha passado por algo assim. Pensei que já tinha chegado numa fase da vida em que não passaria por isso."
Essa era a Tatiana antes. Uma mulher que, em suas próprias e poéticas palavras, "já era potência, já era feliz, já era livre". O que ela buscava não era um salvador ou um provedor. "Eu só queria um lugar para descansar", relembra. Após anos de foco na carreira e na criação da filha, ela desejava a simplicidade de uma companhia, a calmaria de um amor maduro para compartilhar a vida que já era plena. E foi com essa guarda baixa, com o coração aberto para o afeto, que o algoz se apresentou, disfarçado de príncipe.
A teia invisível do controle
A violência psicológica é uma predadora silenciosa. Ela não deixa marcas no corpo, não produz o hematoma visível que gera alarde e comoção imediata. Seus ferimentos são internos, e seu método é a desconstrução gradual da autoestima e da percepção da realidade da vítima. O início, como Tatiana narra, foi sutil, quase imperceptível, mascarado como uma simples "acomodação de perfis".
"Estava sozinha por muito tempo e pensei: 'Talvez eu precise me adaptar'. Eram duas pessoas com trajetórias diferentes e com aquele momento de adaptação. Achava que era isso", conta ela. Mas o que parecia ser um ajuste natural de convivência logo revelou sua verdadeira face: um controle obsessivo e paranoico que se infiltrava em cada fresta de sua vida.
A invasão era total. "Era um controle abusivo que invadia todas as minhas coisas: meu celular, computador, e-mails, coisas de 5, 6, 7 anos atrás", descreve. Cada passo, cada decisão, cada minuto de silêncio era transformado em munição para acusações infundadas. A lógica do abusador não busca a verdade, mas a submissão. "Eram acusações absurdas de traição. Eu estava em casa com minha filha, fazia lição de casa com ela, não atendia o telefone por 5 ou 10 minutos, e era acusada de estar mentindo. Aí vinham ligações de vídeo, eu atendia, tentando provar que não estava mentindo."
Esse processo contínuo de ter que provar a própria inocência sobre fatos triviais é uma das táticas mais eficazes do que se conhece como gaslighting. O termo, originado de uma peça de teatro de 1938, descreve a manipulação psicológica que leva a vítima a duvidar de sua própria memória, percepção e sanidade. O abusador nega a realidade, distorce fatos e acusa o outro de ser excessivamente sensível, louco ou desequilibrado. Para Tatiana, o efeito foi devastador.
O ponto de inflexão, o momento em que a erosão de sua identidade atingiu um nível crítico, aconteceu no consultório de sua terapeuta. "Passado alguns meses, cheguei na terapeuta convicta de que tinha dupla personalidade. As coisas que ele dizia me confundiam. Como eu já não acreditava no que eu sentia, na pessoa que eu era, a terapeuta quase me deu um 'chacoalhão físico', falando: 'Tatiana, você está fora de si. Você não tem esse diagnóstico'."
Foi um choque de realidade, um vislumbre da mulher que ela era se perdendo no nevoeiro da manipulação. A partir dali a percepção de que algo estava profundamente errado começou a se consolidar, mas a saída ainda era um caminho distante e tortuoso.
O duplo vínculo: a armadilha do amor e da dor
Ao ouvir relatos como o de Tatiana, uma pergunta inevitavelmente surge na mente de quem está de fora: "Por que ela não foi embora antes?". A resposta é complexa e reside em um fenômeno psicológico conhecido como "duplo vínculo" ou ciclo do abuso. "Uma relação abusiva não é só ruim", explica Tatiana com uma clareza forjada na dor. "Se fosse só ruim, você sairia."
O relacionamento abusivo é um carrossel de extremos. Momentos de tensão, controle e humilhação são intercalados com fases de "lua de mel", onde o abusador se mostra carinhoso, protetor e arrependido. Ele promete mudar, evoca o amor que os une e reforça a ideia de que ninguém no mundo amará a vítima como ele. "Ele traz sentimentos de proteção, de cuidado, de amor, e você acha que se perder isso, perderá toda a felicidade da vida. Então, você permanece", analisa.
Essa montanha-russa emocional cria uma dependência química no cérebro, similar à de um vício. A vítima fica condicionada a suportar o sofrimento na esperança de receber a recompensa do afeto, que se torna cada vez mais esporádico e condicional. O abusador se posiciona como a única fonte de salvação e felicidade, ao mesmo tempo em que é a causa de todo o sofrimento.
No caso de Tatiana, esse vínculo era reforçado por uma narrativa poderosa. "O meu olhar para ele era de que realmente tínhamos um vínculo diferente. Eu achava que, se desistisse, teria perdido o grande amor da minha vida. E isso era reforçado por ele: 'Nunca ninguém te amou como eu te amo'", recorda. Essa frase é um clássico do manual do abusador: isolar a vítima, fazendo-a crer que o relacionamento, por mais tóxico que seja, é único e insubstituível.
O olhar empático que Tatiana hoje dedica a outras mulheres vem justamente dessa compreensão profunda. "É difícil explicar isso, porque quando olho para trás, tenho uma clareza do que aconteceu, mas não consigo entender como eu via tudo aquilo durante a relação. Isso me fez ter um olhar empático para outras mulheres que passam por situações semelhantes." Ela sabe, por experiência própria, que julgar é fácil; entender a complexidade da teia que aprisiona é o verdadeiro desafio.
O ponto de ruptura e a reconquista da independência
Toda barragem, por mais resistente que seja, tem um limite. A de Tatiana começou a trincar quando uma centelha de sua antiga identidade foi reacendida. Após um período afastada, ela decidiu voltar ao mercado de trabalho. Mesmo que a posição não fosse a que almejava em seu auge, o simples ato de retomar uma atividade profissional, de ter um espaço seu, foi transformador. "Algo mudou em mim, deu uma nova força de independência", diz ela.
A autonomia é o veneno para o controle. À medida que Tatiana recuperava seu eixo, a intensidade do abuso escalava. A tática do abusador, sentindo que estava perdendo o domínio, tornou-se mais desesperada. "Ele sempre ameaçava terminar a relação se eu não fizesse o que ele queria."
O fim veio em um dia como tantos outros, durante uma chamada telefônica. A expectativa era a de mais uma torrente de gritos e acusações. Mas algo, finalmente, havia se quebrado dentro dela. A exaustão superou o medo. Em um ato de autopreservação quase instintivo, ela desligou o telefone. E então, o passo mais difícil e libertador: bloqueou o contato. "Nesse momento, eu disse que não ligaria mais."
O silêncio que se seguiu não foi o da opressão, mas o da libertação. O primeiro sentimento, surpreendentemente, não foi de dor, mas de alívio. "Primeiro, consegui respirar e não chorei mais." A ausência do caos constante permitiu que outros sentimentos, há muito reprimidos, viessem à tona. "Depois, veio a raiva, que me ajudou a sair." A raiva, nesse contexto, não é um sentimento destrutivo, mas um combustível poderoso, o reconhecimento da injustiça sofrida.
Claro, o processo não foi linear. A abstinência do "duplo vínculo" trouxe suas crises. "Aí, depois, veio a carência e a dúvida: será que fiz a coisa certa?", admite. É nesse momento de vulnerabilidade que muitas mulheres recaem. A consciência disso levou Tatiana a adotar uma estratégia radical e necessária: o contato zero. "O que me manteve distante foi, realmente, a terapia, que é algo que não abro mão, além de exercícios físicos e a necessidade de me manter ativa. Citei um bloqueio geral: sem contato, zero aproximação, porque só assim consegui me resgatar e me reconstruir."
O resgate estava em andamento. Mas a reconstrução completa exigiria uma nova ferramenta: a palavra escrita.
Escrever para curar: o nascimento de um projeto
A dor, quando não verbalizada, fica encapsulada no peito, pesando, asfixiando. A sugestão que mudaria tudo veio de onde ela encontrava seu refúgio seguro: a terapia. "Aquilo estava me enchendo o peito; eu não conseguia lidar com tudo que consegui nomear depois", recorda. "Numa conversa com a terapeuta, ela falou: 'Por que você não começa a escrever para ver se consegue lidar melhor com o que está acontecendo?'"
Tatiana escolheu o Instagram como seu diário público, mas com um cuidado para se proteger. Ela não queria exposição, não queria que a história fosse sobre "a Tatiana". O objetivo era catártico, era organizar o caos interno. Para isso, criou um distanciamento genial. "Comecei a escrever e coloquei uma boneca para me representar, porque eu não queria aparecer. Eu escrevi até em terceira pessoa, como se fosse uma outra pessoa. Acho que esse distanciamento me ajudou a entender o que estava realmente acontecendo."
O perfil, com a imagem da boneca e os textos curtos e incisivos, começou de forma despretensiosa. "No primeiro dia, minha mãe deu um like. No outro dia, minha mãe e minha irmã também." Mas a verdade, quando dita com autenticidade, tem um poder magnético. Em questão de semanas, algo extraordinário começou a acontecer.
"Passado 30 dias, muitas mulheres começaram a reportar, dizendo que eu estava escrevendo e contando as histórias delas." A dor de Tatiana encontrou eco na dor de centenas, depois milhares de outras mulheres. A experiência, antes solitária, tornou-se coletiva. O projeto de autocura virou um movimento.
Uma mensagem em particular selou essa transformação: "Uma delas me escreveu: 'Desculpa te dizer isso, mas a sua dor me conforta, porque eu não estou sozinha sentindo isso'". Naquele momento, Tatiana percebeu a dimensão do que havia criado. "Quando vi que não era só comigo, que tinham outras pessoas passando por aquelas angústias, as coisas mudaram de cenário dentro de mim." Sua dor individual havia se tornado um serviço, um abraço virtual em uma comunidade de sobreviventes.
"Ela não disse": o livro como espaço para o silêncio
O sucesso do projeto no Instagram mostrou que havia uma demanda reprimida por essa narrativa. A transição para o livro foi um passo natural, um desejo de eternizar aquelas palavras e dar-lhes um novo formato, mais íntimo e perene. Como bem observou meu colega Dielcio Moreira durante a entrevista, o estilo de escrita de Tatiana é singular. "Frases curtas e concisas, quase como um poema, mas narrando uma história."
Essa escolha estilística não é um mero capricho estético. É funcional. "Não gosto de narrativas longas", explica Tatiana. "Queria falar sobre a emoção e deixei espaço para o silêncio. Se escrevesse muito detalhadamente, tiraria isso."
O título, "Ela não disse", é a chave para compreender a obra. Ele não se refere ao que Tatiana não contou, mas ao espaço que ela deliberadamente deixou em branco para que cada leitora pudesse preencher com suas próprias experiências, suas próprias dores, seus próprios silêncios. "Eu dei espaço para o silêncio", reitera. "A cada vez que leio, me emociono e resgato coisas que não estão escritas."
O livro é estruturado em três atos: "Ela já era", descrevendo a mulher potente de antes; o "durante", com a narrativa da relação abusiva; e o "pós", o caminho da reconstrução. Ao dar nome aos bois, ao chamar o que viveu de "relacionamento abusivo" sem eufemismos, Tatiana também se libertou da última amarra: a de "colocar panos quentes" sobre a própria história.
A mensagem final e o futuro da escrita
Hoje, Tatiana Poletti se apresenta como "uma mulher que sobreviveu a uma relação abusiva, que deu a volta por cima e que, através dessa experiência, conseguiu dar voz a outras mulheres". Sua missão é clara e poderosa. Ela não quer que as mulheres se fixem na vitimização, mas que usem a experiência como um trampolim para a transformação.
"A mensagem que deixo com esse livro é que não devemos mais perguntar 'Por que fizeram isso comigo?' e, sim, 'O que vou fazer com isso que me aconteceu?'", proclama. É uma convocação à ação, à apropriação da própria narrativa. Tatiana transformou sua dor em livro, em palavra, em eco. Ela espera que outras mulheres, ao lerem sua história, possam encontrar as ferramentas para fazerem o mesmo, cada uma à sua maneira.
E sua jornada como escritora está longe de terminar. Ela já trabalha em um novo projeto, provisoriamente intitulado "Antes dela não disser tudo". Desta vez, o foco é menos biográfico e mais didático. "Esse livro que estou escrevendo agora não é mais biográfico, é sobre a identificação do abuso emocional. Quero que as mulheres entendam as nuances desse tipo de violência."
Ao final de nossa conversa no Nossa República, ficou a sensação de ter testemunhado não apenas uma entrevista, mas um depoimento histórico. A jornada de Tatiana Poletti – da executiva de sucesso à vítima silenciada, e da sobrevivente à escritora que lidera um movimento – é um poderoso lembrete de que a vulnerabilidade não é fraqueza e que a maior força de uma pessoa pode residir em sua capacidade de se reconstruir.
Sua voz, antes abafada pela sombra do controle, hoje ilumina o caminho para inúmeras outras, provando que, mesmo após o mais devastador dos silêncios, a palavra, quando carregada de verdade e propósito, tem o poder de curar, libertar e transformar. E o que ela não disse em seu livro, ela diz agora com sua vida: é possível florescer depois da dor. Mais do que possível, é necessário.