Ela quase nunca se anuncia com violência física. Não começa com um tapa, um soco ou um chute. O ponto de partida, segundo a advogada criminalista Jacqueline Cândido de Souza, é muito mais sutil e, por isso mesmo, perigoso. São frases que desmerecem, comparações com outras mulheres, palavras ofensivas que não parecem graves, mas que corroem pouco a pouco a autoestima da vítima.
“É nesse momento que a confiança começa a ser fragilizada e se instala a violência psicológica”, explica Jacqueline, que há cinco anos atua como especialista em direito das mulheres. “Um empurrão leve, uma ofensa disfarçada: tudo isso vai se acumulando até se transformar em agressão explícita.
Um dos primeiros movimentos do agressor, aponta a advogada, é isolar a vítima. Distante da família, sem amigos por perto e com a autoestima abalada, a mulher se torna mais vulnerável. A dependência financeira completa o ciclo: sem renda, muitas acabam presas não apenas à relação, mas também à ideia de que não terão como sustentar os filhos ou recomeçar sozinhas.
“É como aquela dúvida do ovo e da galinha. A dependência econômica leva à dependência emocional e vice-versa”, diz Jacqueline. O resultado é um aprisionamento silencioso.
O ciclo da violência
Apesar de a violência doméstica manifestar-se de diversas formas, a psicóloga norte-americana Lenore Walker identificou um ciclo repetitivo nas agressões conjugais. A primeira fase, conhecida como aumento da tensão, o agressor fica irritado por questões triviais, desencadeando acessos de raiva. Ocorrem as humilhações, ameaças, objetos são destruídos. E a vítima fica num estado de medo, tristeza e angústia. Busca acalmar o agressor, negando a situação ou tentando esconder o que ocorre no seio do lar. Adota uma postura que visa não provocar o agressor. Essa tensão se estende por dias ou anos e culmina na fase dois, conhecida também como ato de violência.
O ato de violência é quando o agressor de fato explode. A tensão acumulada se materializa em violência verbal, física, psicológica, moral ou patrimonial. Mesmo ciente do potencial destrutivo do agressor, a vítima se sente paralisada e sofre uma tensão psicológica severa. Geralmente, há um distanciamento do agressor e mulher alvo dessa violência pode tomar decisões como denunciar, buscar ajuda, separar ou atentar contra a própria vida.
A fase três é a do arrependimento combinado com comportamento carinhoso, chamada também de “lua de mel”. Aqui o agressor se torna amável para conseguir se reconciliar. A mulher se sente confusa e pressionada a manter o relacionamento, mais ainda se a relação originou filhos. Ela abre mão de diretos e recursos diante da promessa de mudança do agressor. A relação experimenta um período de calmaria, a mulher se sente feliz por enxergar um desejo de mudança. Como o agressor demonstra remorso, ela se sente responsável por ele, o que estreita a relação de dependência entra a vítima e o agressor. Um misto de medo, confusão, culpa e ilusão fazem parte dos sentimentos da mulher. Por fim, a tensão volta e, com ela, as agressões da fase um.
“É comum que muitas mulheres nem sempre consigam identificar que estão em um ciclo de violência. Muitas vezes, essa percepção é encoberta por uma normalização do ciúme e do controle, que são vistos como cuidado por algumas mulheres. Esse comportamento não está restrito a camadas sociais mais baixas, mas pode ser encontrado em todas as classes sociais, e isso é preocupante. A mudança de mentalidade deve começar pelo reconhecimento do valor individual das mulheres e pela conscientização de que nenhuma forma de possessividade ou controle é aceitável”, externa a advogada.
Legislação x temor
O Brasil dispõe de legislação robusta, como a Constituição e a Lei Maria da Penha, referência mundial no combate à violência doméstica. Mas, na prática, Jacqueline Cândido de Souza considera que a proteção falha porque as mulheres ainda sentem medo de buscar auxílio.
“As leis são boas, mas a implementação ainda é insuficiente. Muitas mulheres conhecem seus direitos, mas não se sentem protegidas. O número de agressores é maior do que o sistema consegue conter”, afirma a advogada.
A maior parte das vítimas de feminicídio em 2025 em Mato Grosso não contavam com medida protetiva, embora a Lei Maria da Penha preveja o mecanismo para afastar o agressor da vítima. Em outros casos, sequer boletim de ocorrência foi registrado. Das 33 mulheres vítimas de feminicídio, 28 não tinham medida protetiva. Quando observado o registro de boletim de ocorrência contra o agressor, apenas 7 vítimas o fizeram. “Isso mostra o abismo entre a legislação e sua aplicação na vida real”, alerta.
Para além das falhas institucionais, há uma barreira invisível, mas profundamente enraizada: a cultura. Desde cedo, mulheres são ensinadas a se sacrificar, a cuidar, a aceitar o homem como provedor. Nessa lógica, o ciúme e o controle são frequentemente normalizados como cuidado.
“Essa mentalidade atravessa todas as classes sociais. E isso é grave, porque impede que muitas mulheres reconheçam que estão em um ciclo de violência”, explica.
Romper com esses padrões exige mudança cultural. E essa transformação, defende a advogada, começa pela educação. “Precisamos levar o debate para dentro das escolas, falar sobre respeito, igualdade, empatia. Ensinar meninos e meninas desde cedo que nenhuma forma de controle ou possessividade é aceitável.”
Além da educação, Jacqueline destaca o papel da sociedade no acolhimento das vítimas. “O silêncio e a inércia levam a consequências trágicas. Quando uma mulher pede ajuda, ela não pode encontrar julgamento, mas sim apoio. Familiares, amigos, todos nós temos responsabilidade nesse processo.”
O ciclo da violência é complexo, feito de pequenos gestos que se transformam em grandes tragédias. Mas ele pode ser rompido. Leis, políticas públicas, educação e, sobretudo, acolhimento são caminhos para que as mulheres deixem de carregar sozinhas um fardo histórico. “O que precisamos”, conclui Jacqueline, “é trazer luz a esses padrões nocivos para que as próximas gerações não repitam as mesmas dores que tantas mulheres enfrentam hoje.”