BLOG DO MAURO Terça-feira, 21 de Outubro de 2025, 09:23 - A | A

Terça-feira, 21 de Outubro de 2025, 09h:23 - A | A

DEBATE RELEVANTE

O remédio amargo de Leitão: as reformas que o Brasil finge não precisar

Mauro Camargo

Quando uma voz experiente do sistema, um homem que já presidiu a bancada mais poderosa do Congresso e conhece como poucos os corredores acarpetados de Brasília, decide chutar o tabuleiro, é preciso parar para ouvir. As recentes declarações de Nilson Leitão, ex-prefeito, ex-deputado e uma das mentes mais lúcidas da política mato-grossense, não são um mero desabafo ou um balão de ensaio para uma futura campanha. São o diagnóstico preciso de um corpo político em metástase, acompanhado da prescrição de um tratamento de choque, um remédio tão amargo quanto indispensável.

Leitão coloca o dedo em três feridas abertas e purulentas que a classe política brasileira insiste em cobrir com o curativo sujo do corporativismo e da sobrevivência: a reeleição para o Executivo, o fundo partidário e o gigantismo do Legislativo. Suas propostas, à primeira vista, soam como música para os ouvidos de uma população exausta do circo de horrores que se tornou a política nacional. Contudo, como em toda quimioterapia, os efeitos colaterais podem ser devastadores se a dose não for meticulosamente calculada.

Analisar o "pacote Leitão" exige a frieza de um cirurgião e a coragem de encarar a anatomia de um monstro que nós mesmos criamos. Vamos por partes, como faria um esquartejador de velhas e más ideias.

A primeira dinamite: o fim da reeleição

A proposta de acabar com a reeleição para presidentes, governadores e prefeitos é, talvez, a mais popular e a mais complexa de todas. Leitão acerta no alvo ao diagnosticá-la como a "mãe de grande parte da corrupção". E ele tem razão. A reeleição, instituída em 1997 sob a justificativa de alinhar o Brasil a outras grandes democracias, transformou-se aqui num câncer. O primeiro mandato de qualquer governante virou, na prática, um gigantesco comitê de campanha para garantir o segundo.

A máquina pública, com seu orçamento bilionário e seus milhares de cargos, é descaradamente mobilizada para um único objetivo: assegurar a permanência do chefe no poder. Obras eleitoreiras são inauguradas às pressas, programas sociais são turbinados nos meses que antecedem o pleito, e a negociação por apoio político se torna uma feira livre onde a moeda de troca é o nosso dinheiro.

O gestor, que deveria estar planejando o futuro do estado ou da cidade para as próximas décadas, gasta sua energia e nosso tempo pensando apenas nos próximos quatro anos. É a tirania do curto prazo em sua forma mais perversa.

Um mandato único, talvez de cinco ou seis anos, como já foi defendido por muitos, liberaria o governante dessa amarra. Ele poderia, em tese, tomar as medidas impopulares, porém necessárias, no início de sua gestão, sem o medo de sangrar eleitoralmente.

Teria o tempo e a paz de espírito para executar projetos de longo prazo, aqueles que não rendem votos imediatos, mas que transformam de fato a vida das pessoas. A troca de poder se tornaria mais fluida, promovendo a renovação de quadros e de ideias, um antídoto poderoso contra a formação das oligarquias que se perpetuam no poder regionalmente.

Contudo, aqui reside a primeira face do veneno que acompanha o antídoto. Acabar com a reeleição é também tirar do eleitor a ferramenta mais poderosa que ele possui: o poder de premiar ou punir um governo nas urnas. Se um prefeito faz uma gestão exemplar, transformadora, por que impedi-lo de continuar? A reeleição, quando funciona, é o reconhecimento popular de um trabalho bem-feito.

Além disso, a proposta cria a figura do "pato manco" (lame duck) em escala industrial. Um presidente ou governador, nos dois últimos anos de seu mandato único, sem a possibilidade de reeleição, veria seu poder político derreter. Deputados, senadores e aliados, já de olho no próximo ciclo de poder, simplesmente o abandonariam. É o que acontece quando o processo eleitoral privilegia o nome de um político e não as ideias de um partido ou aliança política.

A governabilidade, já tão difícil no nosso presidencialismo de coalizão, ainda seria um pesadelo. Correríamos o risco de ter um país paralisado a cada final de mandato. E há ainda um argumento cínico, mas realista: um governante mal-intencionado, sabendo que tem apenas uma chance, não se sentiria tentado a fazer "o pé de meia" de uma vida inteira em apenas um mandato, já que não precisa mais prestar contas ao eleitorado?

A proposta de Leitão é um convite a repensar nosso sistema. Talvez a solução não seja o fim da reeleição, mas o fim do financiamento de campanha como o conhecemos e regras mais duras contra o uso da máquina pública. O diagnóstico da doença está correto, mas a cirurgia proposta pode matar o paciente.

O segundo petardo: a guilhotina no Fundo Partidário

Aqui, Leitão toca no cofre, e quando se mexe no dinheiro, os gritos são mais altos. A ideia de extinguir o fundo partidário público é de uma lógica cristalina e irrefutável para o cidadão comum. Como justificar que, em 2026, mais de 5 bilhões de reais de dinheiro público (somando os fundos partidário e eleitoral) sejam entregues a caciques partidários para financiar campanhas e manter estruturas luxuosas em Brasília, enquanto faltam recursos para leitos de UTI, vagas em creches e asfalto nas ruas?

É imoral. O fundo partidário transformou os partidos políticos brasileiros em caricaturas de si mesmos. Eles não precisam mais de militantes, de ideias ou de conexão com a sociedade. Precisam apenas de uma bancada polpuda o suficiente para garantir uma fatia maior do bolo. O poder migrou das bases para o presidente do partido, que, com a caneta e o cofre na mão, decide quem vive e quem morre na política. Ele escolhe quem terá tempo de TV, quem receberá o "santinho" milionário e quem será deixado para trás. A fidelidade partidária deixou de ser ideológica para se tornar meramente financeira. É um sistema que alimenta o fisiologismo e cria políticos que não devem satisfação ao seu eleitor, mas ao "dono" do partido que bancou sua campanha.

A proposta de Leitão é resgatar a essência da representatividade: os partidos deveriam ser financiados por seus filiados e simpatizantes. Quem acredita numa causa, que contribua para ela. Isso forçaria as legendas a terem propostas claras, a dialogarem com a sociedade e a construírem uma base real, em vez de serem meros amontoados de siglas de aluguel.

Mas, novamente, o "outro lado" da moeda é assustador. Ao secar a fonte de financiamento público, quem pagará a conta da política? A resposta é óbvia e perigosa: o grande capital. Sem o dinheiro público para, ao menos em teoria, equilibrar a disputa, as eleições se tornariam um jogo exclusivo para bilionários ou para aqueles apadrinhados por grandes corporações, bancos e setores com interesses específicos no Congresso, como os que impedem a taxação das bets, bancos e bilionários, o chamado BBB.

Correríamos o risco de trocar a oligarquia dos chefes de partido pela plutocracia descarada, onde as leis seriam escritas não com a tinta da caneta, mas com o ouro dos lobistas. Partidos de trabalhadores, movimentos sociais, novas lideranças sem berço de ouro ou padrinhos ricos teriam alguma chance de competir? O sistema, que já é desigual, se tornaria ainda mais excludente. O fundo público, por mais problemático que seja, nasceu como uma tentativa (falha, é verdade) de combater o Caixa 2 e o poder avassalador do dinheiro privado. Extingui-lo sem criar um modelo alternativo robusto e transparente pode ser como tentar apagar um incêndio com gasolina.

A terceira navalha: a dieta forçada do Congresso

A proposta de reduzir o número de deputados é, de longe, a de maior apelo popular. É o famoso "cortar na própria carne" que o povo tanto pede. O argumento de Leitão, comparando o Brasil com os EUA, é poderoso. Por que um país com uma população menor tem mais deputados federais? A conta, de fato, não fecha. A ideia de que "qualidade é melhor que quantidade" é um mantra que ecoa com força. Um Congresso mais enxuto seria, teoricamente, mais ágil, menos custoso e mais focado.

Porém, essa é a mais perigosa das três propostas do ponto de vista da representatividade democrática. Reduzir o número de cadeiras significa aumentar o número de votos necessários para eleger um representante. Na prática, isso fortaleceria ainda mais os grandes centros urbanos e os candidatos "puxadores de voto", como celebridades, líderes religiosos e fenômenos de rede social.

A representação de minorias, de pequenas cidades do interior, de grupos sociais com pautas específicas, seria pulverizada. Se hoje já é difícil para um professor, um líder indígena ou um pequeno agricultor se eleger, num cenário de cadeiras reduzidas seria uma missão quase impossível. Estados menos populosos, como os da Amazônia ou do Centro-Oeste, perderiam ainda mais força e voz em Brasília, tornando-se meros espectadores das decisões tomadas pelo eixo Sul-Sudeste.

O problema do nosso Congresso não é o seu tamanho, mas a sua disfuncionalidade, o seu custo exorbitante e, principalmente, a baixa qualidade de muitos de seus membros. Uma dieta que elimina a gordura junto com a massa muscular pode deixar o corpo político mais magro, porém anêmico e sem força para representar a diversidade de um país continental como o Brasil.

O labirinto das regras e o grito de um político preso

Por fim, a frustração de Leitão com a impossibilidade de montar uma chapa no PSDB é o sintoma final de toda essa doença. Um político experiente, com capital político e boas ideias, se vê de mãos atadas por regras criadas para, supostamente, fortalecer os partidos. A cláusula de barreira e o quociente eleitoral, pensados para evitar a fragmentação partidária, acabaram por criar feudos, onde os "donos" das siglas têm poder absoluto e negociam vagas como se fossem mercadorias.

É a prova de que as reformas pontuais, feitas sem uma visão sistêmica, muitas vezes geram monstros piores do que os que pretendiam combater. A dificuldade de Leitão é a mesma de milhares de outras potenciais lideranças Brasil afora, que são barradas na porta do sistema por não se curvarem aos caciques ou por pertencerem a partidos que viraram cascas vazias, caso do PSDB que se esvaiu na confusão ideológica em que se meteu na onda bolsonarista.

A coragem de debater o inadiável

Nilson Leitão não oferece soluções fáceis, mas provoca um debate que a elite política brasileira varre para debaixo do tapete há décadas. Suas propostas, embora recheadas de efeitos colaterais perigosos, atacam as causas, e não apenas os sintomas, da nossa crise de representatividade.

O erro seria abraçar suas ideias como uma panaceia, um elixir mágico que curará todos os nossos males. O acerto é usá-las como o ponto de partida para uma discussão séria, profunda e corajosa sobre o tipo de democracia que queremos. O sistema político brasileiro não precisa de uma reforma, precisa de uma refundação. E o mérito de Leitão é ter a coragem de, mesmo sendo parte dele, acender o pavio. O som da explosão pode ser ensurdecedor, mas talvez seja o único barulho capaz de nos acordar do coma. O canto da sereia das soluções simples esconde um mar de consequências complexas, mas o silêncio cúmplice diante do abismo é, de longe, a pior de todas as opções.



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