CONTEMPORANEIDADES Quarta-feira, 22 de Julho de 2020, 09:27 - A | A

Quarta-feira, 22 de Julho de 2020, 09h:27 - A | A

NINA RICCI

Escrevo, para me reconciliar

Nina Ricci

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Artista, licenciada em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo e recentemente ingressou oficialmente na formação continuada em Artes do diálogo pela Universidade de Nós Pessoas. @ninamricci

Corpos de mulheres estão nas mídias o tempo todo das mais diversas formas, quer elas queiram ou não. Há séculos nossos corpos sofrem processos de mutilação e atrofia. Essas palavras talvez soem radicais para quem passa por aqui despretensiosamente. Mas te convido a parar junto comigo um pouco mais de 15 segundos - fique tranquilo que não irei muito longe. Quantas vezes você já ouviu que meninos são naturalmente fortes e destemidos, enquanto as meninas são frágeis e delicadas?

Eles são incentivados a correr, pular, bater, gritar, e desenvolvem mais habilidades motoras, e de força em decorrência desse estímulo. Elas, pelo contrário, embora possuam condições muito parecidas, são orientadas (note que estou suavizando para que você continue comigo um pouco mais) a permanecerem sentadas, quietas, sorridentes e obedientes. Caso contrário - Deus nos livre uma menina que sente de pernas abertas - serão taxadas de “moleque”, “sem modos”, “dada”... e à medida que crescem, a lista de nomes também cresce exponencialmente para nos deslegitimar, e (sim!) mutilar o corpo da mulher.

Veja, meu caro amigo leitor (falo com você que é homem cisgênero, mesmo sabendo da probabilidade de serem minoria aqui). Veja, que nem voltei muito no tempo, não mencionei importantes eventos históricos, não reproduzi dados sobre violência de gênero, não utilizei termos em inglês para explicar os procedimentos que vocês utilizam há séculos para nos tirar a voz, a sanidade, a saúde.

Fiz tais escolhas porque essas informações estão à sua disposição, na voz de pessoas que certamente possuem muito mais competência para falar sobre isso do que eu. O que quero trazer neste texto hoje é um testemunho sobre a experiência que transpassa o meu corpo e a minha existência - no desejo utópico de que você se aproxime de uma realidade que inegavelmente é diferente da sua.

Ufa! Então vamos!

O testemunho que trago é sobre reconciliação. Outro dia, conversando com uma amiga ficamos imaginando: será que existe alguma mulher nesse mundo que não odeie o próprio corpo? Ou melhor, que já tenha passado por tantos processos de desconstrução que, de fato, ame seu corpo como ele é? Achamos que não.

Então eu comecei a contar para ela algo que falo raríssimas vezes. A vida toda eu tive certeza de que era gorda. Olhava as pessoas ao meu redor e achava que todas elas eram magras e naturalmente perfeitas. Disseram-me que ser gorda era algo desprezível e tinha a ver com a minha força de vontade. Ouvia as ‘brincadeiras’ que os meninos faziam “gorda, baleia, saco de areia…” e aquilo me enfurecia, me entristecia e foi criando em mim duas convicções: “Para ser amada preciso ser magra” e “eu preciso ser forte”. Conclusão, foram anos e anos vivendo essa perspectiva que distorcia completamente a minha visão sobre o meu próprio corpo (que na prática nunca foi um corpo gordo). E sobre a minha relação comigo e com as pessoas, levando em momentos extremos à reprodução de padrões de compulsão alimentar, anorexia e bulimia. Reconheço os inúmeros privilégios e a sorte de poder contar aqui uma narrativa relativamente leve e que não resultou em depressão, ansiedade, suicídio. Porque essa é a realidade majoritária.

Não importa o quanto a gente se esforce para estar dentro da norma patriarcal o fato é que tudo nunca será suficiente, nós devemos dedicar, para esse fim, todo o tempo e energia que nos resta entre afazeres domésticos não compartilhados, maternidade quase compulsória, e quem sabe, com sorte estudar e ter uma carreira. E são tantas as intervenções nos nossos corpos: as roupas que usar, quanto pêlo ter no corpo, quanto devemos medir, pesar, como deve ser o nosso cabelo, o nosso humor, a nossa fala, os lugares de poder que ocupamos… que é preciso mesmo ser muito forte para resistir. Mas veja bem, essa força não é daquelas que a gente celebra ou admira nas pessoas. Essa é uma força brutalmente imposta, que suprime a nossa natureza dual, complexa, cíclica, intuitiva. É uma força que não nos permite descobrir os reais sentidos da nossa força.

É por isso que escolhi fazer um testemunho que falasse sobre reconciliação. Sobre perceber como tive o privilégio de acessar ferramentas que me permitiram ajustar a ótica sob a qual eu me olhava, ampliando a minha visão de mundo, colocando o meu corpo dentro de uma perspectiva histórica, social, de raça e de gênero. Perceber o privilégio que é poder viver este processo longo. Consciente de que o caminho é longo e em constante mudança, busco compreender através de testemunhos semelhantes ou diversos ao meu, que não há como ignorar (ainda que tentem com afinco) as inúmeras camadas de opressão e privilégio que nos atravessam.

Falo, enfim, sobre reconciliação, inspirada por algo que recentemente ouvi: antes de querer ser uma pessoa melhor, queira ser apenas você”. E agora, falo para todas as leitoras seja qual for o gênero. Olhar para si, às vezes é bem doloroso, principalmente se estamos frágeis, nos sentimos expostas, vulneráveis. Principalmente vivendo em um mundo que suprime qualquer tempo de reflexão com as demandas da economia.

Leia mais: Escrevo, para que sigamos vivas

Eu queria ficar forte. Eu precisava me olhar e ver nos traços do meu corpo que éramos fortes. Mas no meio dessa jornada de toda uma vida tentando colocar o corpo em algum tipo de padrão (e note que já estou dentro de praticamente todos eles), hoje me reconcilio comigo, a partir da certeza de que nada em mim ou no mundo é permanente - nem os padrões, nem a forma como lidamos com eles. Exercito antes de tudo o respeito: à história dos corpos roubados antes do meu, quem sou hoje, como construo o espaço sagrado que é o meu corpo - tudo o que tenho. Respeito, como um ato transformador para todos os corpos. Respeito como um exercício de libertação para os corpos. Aos poucos, e não sozinha, destruo os fios que ainda me conectam aos padrões arcaicos e antiquados aos quais fomos expostas. Amparada nos corpos das minhas irmãs eu tenho certeza que sou muito mais forte, e muito mais frágil do que esse corpo possa expressar. E é com ele, meu corpo, que vou. É através dele, meu corpo, que tudo se passa.

Então, se você chegou ou não até o fim desse texto - admito, não é dos mais fluidos e fáceis e nem poderia ser - transmito nessas palavras, a cada uma de nós, pessoas humanas, um pouco dessa outra força que nos pertence, que é nossa por direito. Que possamos encontrar em nós mesmas a capacidade infinita de se reconhecer e de se reconciliar consigo. Como um processo contínuo, que a gente se permita, que a gente sustente os direitos conquistados e os que ainda estão em jogo por vir. Quem sabe a gente ainda viva um mundo em que seja mais fácil respeitar outros corpos, que passaram por outras trajetórias... Que como nós, e diferentes de nós, tem muito mais que dores e mortes a testemunhar.



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