CONTEMPORANEIDADES Segunda-feira, 24 de Agosto de 2020, 09:51 - A | A

Segunda-feira, 24 de Agosto de 2020, 09h:51 - A | A

NINA RICCI

Escrevo para que as histórias te acordem cedo

Nina Ricci

[email protected]

Artista, licenciada em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo e recentemente ingressou oficialmente na formação continuada em Artes do diálogo pela Universidade de Nós Pessoas. @ninamricci

João Pessoa, 22 de agosto de 2020

Querida amiga,

Antes, saudades, depois saudades.

Escrevo, pois queria te contar uma história que me aconteceu... uma experiência que me lembrou demais seu jeito de olhar e nossas longas conversas.

Que tempos, minha irmãzinha… às vezes vendo e ouvindo o que se passa a cada dia, penso que ainda falta tanto, tanto pra chegarmos a um estado geral de respeito, bem-estar, dignidade mínima para toda gente. Como você mesmo me disse uma vez, o caminho é longo e se refaz sempre por nossas mãos, nada está garantido, não é mesmo?

Apesar do barulho, dos horrores que ainda se sustentam nesse mundo, eu continuo olhando... Continuo olhando por toda parte, querida, à procura do que existe de melhor para a gente se amparar. Dizem que de tanto olhar a gente acaba vendo. Alguma coisa que sempre esteve ali no horizonte, mas os olhos estavam tão cansados que não conseguiam mirar um pouco mais longe: para além do que incomoda, ataca a vista, exaure o corpo e tudo. Quem sabe é a maré, amiga, que está e sempre esteve ali a nos chamar para o que é natural, cíclico, abundante… feito o mar.

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Escrevo para registrar e compartilhar contigo. Te escrevo para encurtar a distância desse isolamento, a distância do medo, do ódio, da exaustão. Escrevo para que você saiba das histórias que se passam por aqui, e quem sabe me conte ainda do que se passa por aí, nos seus horizontes.

Estive sentada por algum tempo num pico lindíssimo onde a presença da natureza cantava alto. Me vi sentada, sangrando e manchando lentamente a pedra com um vermelho intenso. De olhos fechados eu vi, uma espécie de energia gravitacional que puxava tudo para cima. Ia me despindo de várias camadas de roupas; vários tipos de cabelo apareciam em minha cabeça e subiam pelo céu. Num fluxo contínuo, era como se fossem para o ar inúmeras versões de mim, incessantemente.

Num dado momento, sem dor alguma, começaram a sair a pele e a carne. Vi meus ossos expostos, sentados, meditando sobre a pedra. Apenas ossos e uma matéria colorida e leve, como uma chama, que dançava no espaço entre os ossos.

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Depois veio uma intuição, de que ossos só funcionam em conjunto com músculos, tendões, veias... todo o sistema do corpo é preciso para que a gente se mova. Olhei então para baixo e ao redor dos meus pés começou a se formar carne, cada membro foi sendo novamente “corporificado” até que a presença no corpo se integrasse mais e mais. Outra corpa, outra eu.

Sinto, amiga, depois dessa forte experiência, que viver tem a ver essencialmente com isso: um movimento contínuo de despir-se das roupas, cabelos, carnes, até chegar nos ossos e raízes, para nos recriarmos em outras. Sempre. Aquilo que falamos sobre desconstruir é talvez um ato contínuo, é nunca chegar a uma forma fixa ou se enrijecer demais.

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É um processo infinito, natural e necessário, do qual não podemos escapar. Sem a dor excessiva do apego, imagino que possa beirar o prazer - como são as grandes transformações que nos deixam mais perto de nós. Acho que vivemos para encurtar a distância com a gente mesma e com a gente toda.

Escrevo para que essas histórias te acordem cedo e te permitam olhar adiante. Para que a gente não se esqueça como continuar olhando. São as histórias, amiga, sempre a nos guiar... nos lembrando do que realmente nos toca, nos acende… nos permitindo aprender e desaprender.

Te escrevo para fazer voar as saudades.

Gratidão por compartilhar esse percurso comigo. Te mando amor. 

Da sua amiga, Nina.



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Karina 25/08/2020

Que texto gostoso de ler! A parte em que você descreve a sua experiência sentada sobre a pedra, sentindo a energia que levantava os seus cabelos e te deixou em músculos, ossos e sensação, se desenhou perfeitamente na minha mente. Somos, de fato, um conjunto. É um equívoco essa noção de um "eu" independente e desconjunto...

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Alice 24/08/2020

Que texto mais lindo! Um presente de aquecer o coração nessa noite fria! Essa já é a minha coluna favorita! Fico sempre esperando seu texto. Parabéns!!!

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2 comentários

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