Presente no imaginário popular como um povo extremamente ligado ao ocultismo e ao mistério, o povo cigano preserva, na verdade, uma forte conexão com a Natureza, que se manifesta principalmente pela observação cuidadosa daquilo que o poeta Manoel de Barros chamaria de “coisas desimportantes”: a sequência dos dias, os movimentos dos bichos, o barulho do vento, as mudanças do clima, os ciclos da lua.
Por gerações e gerações de uma vida livre da maioria das amarras sociais, os ciganos encontraram inúmeras formas de se adaptar às diferentes culturas dos países rumo aos quais seguiram sem perder sua essência, sua identidade.
Desenvolveram maneiras de se fazer imunes à estranheza curiosa do olhar do outro, ao julgamento pelo qual invariavelmente passam os estrangeiros, os diferentes, os “párias”, que desafiam o mundo ao ser apenas quem são.
E foi ao observar o comportamento das serpentes que os ciganos levaram ao seu universo um ritual que chama a atenção em um momento como o atual, quando nos recolhemos em nosso próprio silêncio, na segurança de nossas tocas.
Essa introspecção nos leva a desacelerar, repensar a vida, reavaliar a caminhada, ajudando a retraçar a rota, fazer possíveis desvios, buscar atalhos, planejar os próximos passos com mais cautela. A cautela das sábias serpentes.
Elas, as serpentes, também se recolhem em segurança de tempos em tempos, de acordo com sua idade e espécie, para realizar o processo de ecdise, a “troca de pele”, quando todas as escamas se renovam para que possam expandir seu corpo, possam crescer.
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A pele danificada pelo atrito é deixada pelo chão. As cores se avivam, ficam mais brilhantes, ressaltando seus desenhos. A textura se torna mais lisa e uniforme. O animal renasce, maior e mais forte, novamente pronto para enfrentar seu meio.
É assim, quando se faz necessária a libertação de dores, mágoas, tristezas e pensamentos negativos, que alguns núcleos familiares ciganos realizam uma “troca de pele” coletiva, que consiste em uma reunião em torno da fogueira, na qual são queimados papéis, lembranças, objetos que representem momentos ruins, sempre acompanhados de um desabafo, da expressão do que aquilo significou até então, impedindo o crescimento, a evolução.
Ao apagar da fogueira, os sofrimentos deixam de existir, ficam pelo caminho, como a antiga pele das serpentes. Renovam-se a autoconfiança e a fé.
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Os indivíduos simplesmente não falam mais sobre estas recordações e seguem em frente, com toda a serenidade e a resiliência que traz no sangue quem enfrenta, há séculos, a intolerância e o preconceito.
Como as serpentes e os ciganos, podemos (e devemos) aproveitar essa oportunidade do recolhimento, essa pausa forçada na rotina frenética para “trocar de pele”, abandonar tudo aquilo que não serve mais e nos impede de crescer, expandindo nossa consciência, ampliando a visão de mundo, tornando-a mais intuitiva e apurada para a complexidade das coisas simples e naturais, de forma a nos reconectarmos ao todo do qual fazemos parte e que, tão arrogantemente, fingimos estar acima e além.
