Mais uma resenha e a de hoje se refere ao livro mais importante que eu li esse ano, talvez um dos mais importantes da vida! Um livro que eu gostaria que o mundo lesse. Em ‘Os Homens Explicam Tudo para Mim’, Rebecca Solnit nos ajuda a entender melhor porque o feminismo é tão importante e porque precisamos dele, todos os dias, e faz isso de forma profunda, dolorida e chocante, a todo momento.
O livro inicia fazendo jus a seu título; Rebecca retrata um episódio cômico: Em uma festa com uma amiga, ao conversar com um homem ‘muito importante, que já havia ganhado muito dinheiro’ e mencionar que é escritora, o homem passou um longo período do evento falando sobre um livro importante que ela ‘deveria ler’, sem se dar conta de que, na verdade, a autora do livro é ela mesma.
Ainda após tentar informar isso a ele, o homem a ignora e continua seu discurso afirmando ‘o quanto aquele livro é importante’. A situação é bastante familiar para a maior parte das mulheres: em uma discussão, debate ou em qualquer outro diálogo rotineiro do dia a dia - como uma condescendência masculina - homens sempre assumem o protagonismo e impedem ou invalidam a argumentação feita por uma mulher. Eles passam a explicar assuntos que dominamos e eles não de forma paternalista e ainda – devido ao autoritarismo e arrogância – conseguem pôr em dúvida nossa credibilidade acerca do tema, nos fazem duvidar de nossas próprias pesquisas, de nosso próprio conhecimento e limitam nossas próprias possibilidades – ao mesmo tempo em que treinam a classe masculina a ter autoconfiança total sem nenhuma base na realidade.
O ’mansplaining’ – termo usado para casos como esse, criado através da junção das palavras ‘man’ (homem) e ‘explaining’ (explicação) - aponta ao longo dos ensaios reunidos nesse livro, como essa credibilidade - que é tirada das mulheres - existe também em relatos de agressões, estupros e abusos sexuais. A violência sexual é o único crime que exige provas da vítima, que têm seus relatos contestados e em que, além da violência em si - que é o que normalmente faz uma mulher buscar ajuda - ela ainda é acometida por uma segunda crueldade: a violência institucional, quando até sua sanidade mental e caráter moral são questionados, como se ela estivesse delirando ou que merecesse o que lhe ocorreu.
E não sobrou nenhum: Justiça ou chacina?
Apesar de os homens explicarem tudo para mulheres dia após dia e esse ser o título do livro, esse exemplar não é somente sobre isso. ‘Os Homens Explicam Tudo para Mim’ é um compilado de ensaios da jornalista, historiadora, ativista feminista e autora premiada Rebecca Solnit. A autora trata, de maneira clara e direta - por meio dos seus melhores textos indignados, poéticos e irrequietos - as diferentes manifestações de violência contra a mulher e como mulheres vêm sendo - dia pós dia - silenciadas de todas as maneiras possíveis, desde as formas mais tênues até as mais violentas; como por exemplo o caso do homem de San Diego que matou e cozinhou a esposa e também o de Nova Orleans que matou, desmembrou e cozinhou a namorada. Porém, mais uma vez, ainda que o livro retrate casos arrebatadores como esses, também não é ‘só’ o feminicídio, o estupro e outras violências físicas contra a mulher que estão em pauta, mas as diversas formas de assédio moral que são tão normalizadas em diversos setores da nossa sociedade.
Este livro - que quero chamar de ícone - guia o leitor em uma jornada a compreender como há - em toda essa violência remota - um denominador comum que seleciona o agressor e a vítima: o gênero que prevalece de cada lado. ‘Os Homens Explicam Tudo para Mim’ é uma linda introdução ao feminismo, alguns livros que resenho por aqui; costumo dizer que são ‘um tapa na cara’ ou então um ‘soco no estômago’, mas este livro não. Este não se trata de um tapa, nem de um soco. Este livro é uma briga; com facada no peito, tiro no rosto, sangue jorrando, objetos quebrados e gritos estridentes, mas tudo isso, deferidos a uma mulher - se é que me entende.
Rebecca também cita no livro a cultura do estupro e escancara como essa cultura também é uma violência de gênero epidêmica enraizada no planeta. Em outro capítulo, ela demonstra como - a partir da decisão de não se calar diante de um assédio sexual - uma camareira derrubou - embora que ainda tenha sofrido perseguições e julgamentos extremos - um dos homens mais poderosos do mundo. Este livro – na minha opinião - é um fenômeno! Uma exploração corajosa e incisiva de problemas que uma cultura patriarcal não reconhece, necessariamente, como problemas e ignora, mesmo quando há claras evidências.
De forma bastante clara e coesa e com uma prosa agradável - apesar do assunto que para mim é extremamente revoltante e dolorido - Rebecca se aprofunda e cita os empasses que precisam ser superados, os desafios nos nossos caminhos e apesar do que aparenta, a autora passa longe do pessimismo e dá ênfase não só as desgraças que esta repetição de comportamentos machistas foi capaz de impregnar em nossas vidas, mas também aos avanços no combate à violência contra a mulher, as vitórias históricas já obtidas e a esperança nas novas gerações de mulheres que lutam para escrever e contar suas histórias, ainda que sempre se levantem forças para tentar levá-las de volta ao lugar de opressão que desejam que permaneçamos. A esperança com que Solnit enxerga as possibilidades futuras é especialmente alentadora, ainda que as mulheres de hoje não consigam viver o suficiente para acompanhar este avanço.
Não é paranóia se realmente está acontecendo
Ao longo do livro, Solnit tem a preocupação em demonstrar como as ideias do feminismo podem ser a base de uma mudança ainda mais radical no futuro, que envolva a libertação profunda de todos, bem como o convívio harmônico com o mundo. Ela nos faz refletir sobre a importância de continuar a olhar o futuro como um campo de ação, nos apresenta termos feministas e explica como conseguimos conquista-los ao longo do tempo. Termos esses que podemos e devemos usar e que hoje nos auxiliam a chegar mais perto da justiça. Além de todos esses ensinamentos que embasam e podem libertar, a autora ainda exemplifica porque a maioria dos homens não está interessada em seguir essa batalha conosco, segundo Rebecca - além da igualdade que buscamos enquanto eles temem - agindo em prol das mulheres estariam desafiando toda a estrutura hierárquica da sociedade para nos ajudar. E agora, segundo eu mesma, a maioria deles não aguentaria suportar esse julgamento. ‘Julgamento’, justamente aquilo que nós precisamos suportar todos os dias, sem exceção de nenhum.
Leva tempo. Há marcos no caminho, mas há muitas pessoas viajando por essa estrada, cada uma no seu próprio ritmo; algumas chegaram mais tarde, outras estão tentando impedir as que estão avançando e algumas estão voltando para o começo ou se sentem confusas, sem saber que rumo tomar. Mesmo na nossa própria vida, nós regredimos, fracassamos, prosseguimos, tentamos de novo, nos perdemos, e por vezes damos um grande salto, encontramos o que nem sabíamos que estávamos procurando – e mesmo assim continuamos a conter contradições dentro de nós, ao longo de gerações. A pandemia da violência sempre é explicada por qualquer motivo, menos o gênero do agressor – a explicação mais ampla de todas.