LIVROS E OUTRAS LETRAS Terça-feira, 29 de Dezembro de 2020, 11:21 - A | A

Terça-feira, 29 de Dezembro de 2020, 11h:21 - A | A

DAVID LEVITHAN

Todo dia: Um protagonista, diferentes perspectivas

Letícia Franco Camacho

[email protected]

arquiteta, urbanista e técnica em edificações. Amante da literatura, dos animais e da matemática. @lefcamacho

Como posso começar essa resenha hoje? Este é um livro que me colocou em uma posição bem difícil. Sei que sempre digo que os livros que li e resenhei por aqui me fizeram refletir, esse é mais um deles. Em ‘Todo dia’ conhecemos A - um ser não binário, de dezesseis anos, que todos os dias acorda em um corpo diferente. - Sempre foi assim. Toda manhã, A acorda em uma nova vida. Não há qualquer aviso sobre quem ou onde. Não importa como, A precisa se adaptar a uma nova realidade, todos os dias, por vinte e quatro horas.

Depois de 16 anos vivendo com essas condições, A já se acostumou e possui suas estratégias para lidar com isso de maneira sábia e respeitosa, afinal é o corpo de outra pessoa. Inclusive, definiu e aprendeu a seguir as próprias regras; não se apegar, não interferir... e tudo fluía, até ele habitar o corpo de Justin e através dele, conhecer Rhiannon. Então, suas perspectivas mudam completamente. Até conhecê-la; vivendo cada dia de forma única, A aprendeu a ‘passar despercebido’ e sempre evitava qualquer mudança drástica, procurando sempre seguir a rotina normal de seu hospedeiro e nunca influenciar em suas escolhas. Mas com a chegada dela as diretrizes com as quais costumava viver começam a parar de fazer sentido e ele passa então a querer quebrar as regras, porque finalmente encontrou alguém com quem quer ficar. Dia após dia uma nova vida, mas sempre uma única certeza: ficar perto dela, todo dia.

Essa premissa do livro já é suficiente para instigar o leitor a continuar a leitura pela própria curiosidade de descobrir o que ela lhe reserva. Se nosso protagonista irá viver uma vida diferente a cada dia, isso significa que o livro trará diferentes histórias e diferentes perspectivas. David Levithan ousou na criatividade desta escrita, que é minuciosa, fluida, convidativa e recheada de reflexões. Um livro curto, mas muito denso, pois nele Levithan discrimina fielmente o dia a dia de cada vetor que o personagem habita descrevendo seus gostos musicais, orientações sexuais, personalidades, profissões dos pais, do que gostam, no que são bons, porque pensam de determinada forma, como mantêm o quarto e o guarda-roupas, com quem passam a maior parte de seu tempo e etc.

Cada um deles têm suas particularidades, possuem seu próprio meio de levar a vida e enfrentam seus próprios demônios e medos. O autor retrata isso de maneira muito clara e direta, já fazendo a primeira alusão ao fato de que cada pessoa é um indivíduo e possui suas próprias escolhas e seu próprio modo de considerar e pensar, provando mais uma vez o que eu costumo sempre dizer aqui; que o ponto de vista do que é certo e do que é errado é muito relativo – não de modo general, é claro – mas se tratando de questões e tabus sociais, normalmente o que dizem que é errado, é basicamente o que uma camada de pessoas considera diferente ou fora do comum - um pré-conceito que julga algo que, no final das contas, de errado mesmo, não tem absolutamente nada!

Casos sérios de depressão, problemas com drogas, desavenças familiares, doenças incuráveis, dores, traumas, diferentes religiões, a ânsia de querer enxergar e/ou andar e não poder, jogadores de futebol, góticos, a vontade de amar e ser amado pelo que são, e não pelo que aparentam. A é um ser dotado de uma habilidade inexplicável, que diariamente ‘aterrissa’ em vidas que não são a sua, mas que o fazem sentir uma empatia talvez incompreensível. Como ajudá-los? Difícil, em um dia não dá para fazer nada. Como sobreviver a tantas lições de vida? É tão forte vê-los lidando com seus medos e a maneira como cada um deles suporta sua própria carga de problemas. É importante ressaltar que A só hospeda corpos de pessoas que possuem a mesma idade que a sua, neste caso, A tem dezesseis anos; uma idade tão delicada, tão perturbadora, de descobertas, perguntas sem respostas, mudanças corporais e psicológicas muito significativas. Nessa idade, não somos nem adultos, nem crianças. Ficamos ali, na metade do caminho, literalmente na transição. Chega a ser angustiante perceber como A lida com essas experiências e como, apesar de todas elas, ele procura viver cada dia como único, afinal é isso que eles são.

A passa a procurar por Rhiannon todos os dias, lutando para superar os obstáculos impostos por suas condições. Rhiannon o faz sentir, lutar, questionar... com o passar do tempo, seu amor por ela toma conta de seus pensamentos. Se antes ele deixava-se guiar pelo corpo que habitava, agora ela é o guia, a motivação e o foco de suas ações. É por causa do amor que A cria coragem para lutar pelo que quer, é por meio do amor que ele cria esperanças de ter uma vida diferente e também é por amor que ele abre seu coração. A se vê, então, envolvido em problemas que estão longe de seu controle, mas como esperar que uma pessoa que sempre viveu uma vida normal possa entender a realidade de A? Ou até mesmo acreditar nela? A e Rhiannon precisam questionar tudo em nome do amor, enquanto lutam para se reencontrar a cada 24 horas, ambos precisam superar suas limitações e redefinir suas prioridades. Rhiannon conseguirá ficar com alguém que muda a cada dia? E até onde A acha justo interferir nas vidas que hospeda? Mas, principalmente, o amor pode mesmo vencer qualquer barreira?

David Levithan conseguiu, com maestria, destacar diferentes pontos de reflexão. O protagonista não possui uma história de passado, nem um futuro e sem esses dois, somos apenas nômades em nossas próprias vidas. A é alguém sem corpo, desvinculado de um gênero, podemos interpretá-lo como uma alma, uma essência, que existe de acordo com a vida que habita a cada dia, procurando sempre separar a dele e a do vetor, por respeito. Nenhum fator externo importa para ele, porque A sabe que o que ele é não é definido por sua ‘casca’ e com isso, o autor consegue passar com clareza sua mensagem e a dificuldade que as pessoas têm de aceitar essa ideia. ‘Todo dia’ é uma trama que proporciona um misto de pensamentos e sentimentos, uma mensagem de aceitação e tolerância, além de toda a questão dos limites humanos. ‘Todo Dia’ exercita nossos músculos do respeito e aumenta nossa capacidade de sentir.

Não sei como isso funciona, nem o porquê. Parei de tentar entender há muito tempo. Nunca vou compreender, não mais do que qualquer pessoa normal entenderá a própria existência. Depois de algum tempo é preciso aceitar o fato de que você simplesmente existe. É só que, sei que parece um modo horrível de se viver, mas eu já vi muitas coisas. É muito difícil ter uma noção verdadeira do que é a vida quando se está num único corpo. Você fica tão preso a quem você é. Mas quando quem você é muda todos os dias, você fica mais próximo da universalidade. Mesmo os detalhes mais triviais. Você percebe que as cerejas têm gosto diferente para pessoas diferentes. Que o azul parece diferente, você aprende o valor de um dia, porque todos os dias são diferentes. Ao enxergar o mundo de tantos ângulos, percebo melhor a dimensão dele.



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