Em Mato Grosso, a violência contra a mulher continua a revelar números alarmantes. De janeiro a agosto de 2025, o estado registrou 36 feminicídios, segundo dados do Observatório Caliandra, do Ministério Público Estadual (MPE). O que esses números não mostram, no entanto, são os caminhos de enfrentamento que começam a se consolidar — tanto no campo jurídico quanto no acolhimento emocional das vítimas.
À frente dessa área de atuação está a promotora de Justiça Claire Voguel, que coordena iniciativas de prevenção e acompanhamento de casos de violência doméstica. Ela explica que o desafio não é apenas jurídico, mas também social e psicológico. “O álcool está presente na maioria dos casos, seguido pelas drogas ilícitas. Mas cada vez mais vemos mulheres com independência financeira sendo vítimas. Hoje, o fator determinante é a dependência emocional, alimentada pela violência psicológica”, afirma.
Nos últimos dois anos, o Ministério Público ampliou a rede de apoio às vítimas. Em Cuiabá, o projeto Caliandra funciona como um espaço de porta aberta, onde psicólogas, assistentes sociais e assessoras jurídicas orientam mulheres que buscam ajuda. “É um espaço multiprofissional que auxilia desde a compreensão de processos judiciais até o encaminhamento para políticas sociais que ajudem a romper o ciclo da violência”, explica Voguel.
Além do atendimento presencial, o Observatório Caliandra reúne dados atualizados sobre feminicídios, medidas protetivas e perfis de vítimas e agressores. Até agora (última atualização 2/09), 11.965 medidas haviam sido deferidas em Mato Grosso. A promotora destaca a importância do acesso à informação: “O observatório oferece também materiais educativos, como o Violentômetro, que ajuda mulheres a identificarem sinais de abuso antes que a violência se agrave”.
Embora nem sempre cumpridas, as medidas protetivas têm se mostrado uma ferramenta eficaz. Em 2024, o estado registrou 47 feminicídios, e apenas uma vítima tinha medida em vigor. Neste ano, cinco das 36 vítimas possuíam proteção judicial, mas em três casos haviam retomado o contato com os agressores.
“O dado é claro: quando solicitada e cumprida, a medida protetiva salva vidas”, enfatiza Voguel. Para ampliar o alcance, o portal Caliandra permite que mulheres solicitem a proteção online, sem necessidade de boletim de ocorrência.
A promotora chama atenção para formas de violência menos visíveis, como a psicológica e a sexual dentro do casamento. “Muitas mulheres ainda acreditam que, dentro da relação, o ‘não’ não vale. Temos casos de vítimas que foram estupradas pelos maridos enquanto dormiam ou sob efeito de medicamentos. Isso é crime e precisa ser denunciado”, afirma.
A violência psicológica, por sua vez, se apresenta de forma silenciosa, confundida com cuidado ou zelo. O controle sobre roupas, amizades e redes sociais vai isolando a vítima até que ela perca autonomia. “É esse processo que gera a dependência emocional, hoje mais determinante que a financeira”, explica.
O cenário também preocupa entre adolescentes. Casos de ciúme excessivo, controle digital e manipulação em namoros já chegam ao MPE. Para enfrentar esse avanço, foi lançado o projeto Florescer, voltado a estudantes do ensino médio. A proposta é discutir relacionamentos saudáveis e prevenir que comportamentos abusivos se tornem rotina.
“Esse ciclo começa cedo. Se a gente não dialoga com os jovens, o padrão se repete na vida adulta. Precisamos mostrar que o ciúme não é amor, e que o controle não é cuidado”, destaca Voguel.
Embora o aparato institucional seja essencial, a promotora reforça que o enfrentamento à violência não pode ser responsabilidade apenas do Estado. “Quando acontece um feminicídio, é comum perguntar por que o Estado não agiu. Mas, sem denúncia, não há como intervir. Hoje, mesmo sem a representação da vítima, se a informação chega ao Ministério Público ou à polícia, temos obrigação de investigar. Por isso, vizinhos, familiares e colegas de trabalho podem e devem denunciar. Essa atitude pode salvar vidas”, afirma.
O enfrentamento à violência contra a mulher em Mato Grosso já não se limita às estatísticas de crimes. Os avanços na estrutura de acolhimento, no acesso à informação e na atuação preventiva apontam para novos caminhos. Mas, como lembra a promotora Claire Voguel, romper o ciclo depende também de apoio psicológico, políticas públicas consistentes e do envolvimento da sociedade como um todo.
“Sem rede de apoio, a mulher dificilmente consegue romper sozinha. É preciso olhar para essa questão com a seriedade de quem entende que não estamos falando apenas de processos, mas de vidas que podem ser salvas.”
Assista à entrevista na íntegra: