BLOG DO MAURO Quinta-feira, 11 de Setembro de 2025, 08:25 - A | A

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O JULGAMENTO

A desconcertante metamorfose do ministro Fux

Mauro Camargo

Gustavo Moreno/STF

Ministro Luiz Fux

Num voto controverso, o ministro Luiz Fux pede anulação do julgamento e absolve o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros generais golpistas, mas condena o general Braga Neto e o ajudante de ordens e delator  Mauro Cid

Em momentos de inflexão histórica, espera-se que as mais altas cortes de uma nação ofereçam clareza, coerência e um senso de continuidade jurídica. O julgamento de Jair Bolsonaro e seus aliados por tentativa de golpe de Estado é, sem dúvida, um desses momentos. Contudo, o voto proferido pelo ministro Luiz Fux na sessão de 10 de setembro de 2025 introduziu um elemento de perplexidade e dissonância que ecoará por muito tempo nos corredores da política e do direito. Em uma mudança radical de entendimento, Fux surpreendeu a todos ao se afastar da robusta jurisprudência que o próprio Supremo Tribunal Federal (STF) construiu e que ele mesmo endossou.

A perplexidade não é gratuita. Depois de votar para condenar cerca de 700 réus envolvidos nos ataques físicos às sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023 — os executores do plano —, o ministro agora se vale de argumentos caros à defesa bolsonarista para livrar o ex-presidente e a maioria dos supostos arquitetos do golpe. Essa virada copernicana em sua posição levanta uma questão inevitável e desconcertante: o que terá mudado?

Juridicamente, o voto de Fux se apoia em dois pilares principais, ambos de natureza processual, que evitam a análise aprofundada do mérito das acusações. O primeiro, e mais contundente, é a preliminar de nulidade absoluta por incompetência do STF. Fux argumenta que, como os réus não mais detêm cargos com foro por prerrogativa de função, o caso deveria ser remetido à primeira instância. Trata-se de uma tese formalmente elegante, mas que ignora a própria lógica consolidada pelo Tribunal em casos de crimes cometidos em razão do cargo. A jurisprudência do STF tem se firmado no sentido de que a competência se perpetua quando os delitos estão intrinsecamente ligados às funções exercidas, exatamente para evitar que a renúncia ou o fim do mandato se tornem um ardil para escapar da mais alta corte. Ao adotar essa visão restritiva, Fux não apenas contraria seus pares, mas abre um precedente perigoso que pode ser invocado para desmontar inúmeras outras investigações contra poderosos.

O segundo pilar foi o acolhimento da tese de cerceamento de defesa. Novamente, um princípio sagrado do direito, mas cuja aplicação no caso concreto soa como um preciosismo técnico diante da gravidade dos fatos. Alegar que o volume de provas e o tempo para análise comprometeram a defesa é ignorar que processos dessa magnitude e complexidade exigem um escrutínio igualmente vasto. É uma argumentação que, levada ao extremo, poderia inviabilizar qualquer mega-operação contra o crime organizado ou a corrupção sistêmica. Ao dar guarida a essa tese, Fux, na prática, valida o discurso de que o processo é falho em sua origem, um argumento central da estratégia de defesa dos réus.

Ao se posicionar dessa forma, Fux ficou isolado no julgamento. Sua visível oposição ao relator, ministro Alexandre de Moraes, e ao voto já proferido, pelo ministro Flávio Dino, que caminhavam para uma condenação coesa, criou uma fissura na aparente unidade da Corte frente à maior ameaça sofrida pela democracia brasileira. Esse isolamento, contudo, produz um paradoxo político de consequências imensas.

Por um lado, o ministro fornece um arsenal de argumentos políticos para os golpistas e para a militância bolsonarista. Seu voto será brandido como a "prova" de que o processo é uma "perseguição política", que as regras do jogo foram violadas e que até mesmo um ministro do STF reconhece as "injustiças" cometidas. A absolvição de Bolsonaro em seu voto, ainda que minoritário, será transformada em uma narrativa de vitória, um atestado de inocência emitido por um membro do próprio sistema que eles acusam de algoz. Politicamente, é um balão de oxigênio para um grupo que vinha sendo asfixiado pela contundência das evidências.

Por outro lado, e aqui reside a maior ironia, o voto de Fux acaba por refutar, de maneira cabal, a narrativa da extrema direita de que há uma "ditadura de Alexandre de Moraes no STF". A existência de uma divergência tão radical, técnica e contundente vinda de um ministro experiente como Fux demonstra, inequivocamente, que não há pensamento único ou submissão ao relator. Tanto não há ditadura que Fux divergiu radicalmente de Moraes, utilizando argumentos que confrontam diretamente a condução do processo. Esse fato, por si só, desmantela a histeria sobre um tribunal monolítico e autoritário. A divergência de Fux, embora problemática em seu conteúdo, é a prova viva da vitalidade do debate e da independência dos magistrados dentro da Corte.

A decisão de Fux, portanto, não pode ser analisada apenas sob o prisma do resultado — a absolvição da maioria dos réus em seu voto. Ela precisa ser vista por suas implicações sistêmicas. Juridicamente, ela introduz uma insegurança sobre a competência do STF em casos futuros e flerta com um garantismo penal formalista que pode se sobrepor à busca pela justiça material em crimes contra o Estado Democrático de Direito.

Politicamente, o legado é ainda mais complexo. O voto dá sobrevida a um discurso golpista, mas, ao mesmo tempo, legitima a instituição do STF ao provar que ela não é o monstro autoritário que seus detratores pintam. Resta, contudo, a perplexidade sobre a metamorfose do ministro. Seria uma tentativa de se posicionar como um contraponto "garantista" dentro da Corte? Uma sinalização para o futuro, buscando um reequilíbrio de forças? Ou uma genuína, porém tardia e radical, mudança de convicção jurídica?

Independentemente da motivação, o voto de Luiz Fux neste julgamento histórico será lembrado não apenas por seu conteúdo, mas pela dissonância que causou. Em um momento que pedia pela reafirmação inequívoca das regras do jogo democrático, sua decisão introduziu uma nota de ambiguidade, deixando um rastro de questionamentos que a história e a jurisprudência ainda terão de responder.



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