Aos quatro meses de idade o comunicador Abraão Ribeiro se viu tendo que lutar pela vida. Sofrera um envenenamento e fitou de muito perto a morte. Na busca de uma solução, a mãe do bebê recebeu a recomendação de um médico em Rondônia para que procurasse a ajuda de um benzedor. E ela assim o fez. Foi neste momento que Abraão se viu envolto na energia de São Cosme e Damião. Uma promessa fora feita em troca da recuperação do menino. Ao completar 11 anos, faria anualmente uma festa para os santos. E assim foi. Abraão se recuperou e há 23 anos celebra com muita alegria o 27 de setembro, dia reservado para a louvação a São Cosme e Damião.
Em função da pandemia, neste ano a festa não pode ser realizada para evitar a aglomeração de pessoas. Abraão fez uma seleção de famílias com crianças que estão sofrendo por conta do novo coronavírus e entregou neste domingo marmitas com o tradicional cardápio: Maria Isabel, feijão empamonado e farofa de banana. Foram 200 marmitas confeccionadas mais 200 saquinhos de doces. "Eu e meus amigos vamos com carros distribuindo nas comunidades carentes. Passaremos pelo Novo Terceiro, Cidade Verde, Porto. O foco são as famílias com crianças", destacou.
Há 23 anos nesse movimento de celebração, Abraão disse considerar "estranho" esse 27 de setembro de 2020. "É diferente e estranho. São 23 anos de festa. A comemoração deste jeito é a primeira vez que acontece. Não vai ter movimento das crianças, dos brinquedos grandes, do carrinho de popica e algodão doce. Não haverá calor humano. Será uma coisa mais direcionada para não passar em branco. Vamos levar o nome dos santos e isso que é importante. Além da comida e do saquinho de doce, também levaremos uma palavra de conforto, um carinho. Não pode abraçar, mas vamos levar pelo menos um sorriso, um acalento para pessoas que estão em uma situação complicadíssima. Sei que um dia só não resolve o problema, mas faço de coração para levar um acalento", explica.
Há muitas explicações sobre a origem de São Cosme e São Damião. Uma delas diz que ambos eram gêmeos, que atuavam como médicos, prestando trabalho caritativo e que acabaram mortos num processo de perseguição por terem se convertido ao Cristianismo. Desta feita, foram canonizados. No entanto, com o processo de sincretismo religioso, na época da escravidão, as divindades católicas passaram a também representar as divindades Ibejis, de origem africana nagô iorubá. Para os africanos, São Cosme e Damião traziam semelhanças com Ibejis justamente por serem gêmeos. As divindades africanas atua protegendo as crianças e tudo aquilo que nasce, no momento do seu nascimento, como animais e plantas.
"O sincretismo acontece e essa devoção começa a ganhar forma de proteção das crianças no Brasil. Em outras partes do mundo São Cosme e São Damião são vistos como protetores dos médicos e farmacêuticos", explica a dirigente do Templo de Umbanda Caboclo Pena Branca, de Taubaté (SP), Márcia Moreira. Ela ainda reforça que "toda energia de nascimento passa pelo culto a divindade dos Ibejis".
"A entrega de doces começa pela devoção das pessoas. Elas pedem para proteger as crianças e quando tem gratidão também querem presentear. Doce e criança ter tudo a ver. E isso foi construindo a ideia dos doces, até porque é um momento de alegria para a criançada. Quando precisa comer comida reclama, mas na hora do doce faz festa. Acabou naturalmente levando esse ingrediente para a celebração de Cosme e Damião. Na cultura nagô iorubá os Ibejis são as únicas divindades na qual o açúcar faz parte da oferenda e isso se modernizou com os industrializados", relata Márcia Moreira.
A dirigente ainda conta que outro fator contribuiu para que São Cosme e Damião tivessem reforçada a imagem de protetores das crianças. A cidade de Igarassu, na região metropolitana do Recife (PE) tinha uma grande devoção pelos santos. Enquanto as cidades vizinhas sofriam com uma doença que causava alto índice de mortalidade infantil, Igarassu não registrou a morte de nenhuma criança. "Associam esse milagre a Cosme e Damião e reforçam o fato de serem protetores das crianças".
A benzedeira de Chapada dos Guimarães, Francisca Correia da Costa, mais conhecida como Vó Francisca, afirma que São Cosme e Damião amparam não só as crianças, mas também as parteiras. Com 106 anos, Francisca ao ser indagada o que gostaria de receber em seu aniversário, pediu que fosse feito um bolo para as crianças. E assim ocorre desde 2016. Este ano as festividades também não acontecerão em virtude da pandemia.
O grupo de voluntários que organiza a festa das crianças de Vó Francisca coletou doces e montou saquinhos de guloseimas que serão distribuidos pela família da benzedeira para as crianças pobres da periferia de Chapada dos Guimarães.
Por conta da fé, bondade, dedicação aos necessitados, da resignação, sabedoria e amor ao próximo, das rezas e benzimentos poderosos que curam e trazem equilíbrio emocional a quem a procura, muitos afirmam que "Vó Francisca é uma preta velha encarnada". Os pretos velhos são uma das mais importantes linhas da Umbanda.
"A Vó Francisca é a fé em pessoa. Ela e todas as pessoas de fé, independente de quais religiões forem, todos tem esse entendimento que a criança é a fé. É Deus presente na pureza, na esperança. Então celebrar o aniversário dela com uma festa para as crianças permite que a fé tão pura se expresse através da festa. É importante para todos, para as famílias, as crianças celebrarem o aniversário de uma anciã. Aprendem desde pequenos o valor do ancião. E uma anciã vendo as crianças felizes, correndo, alegres. São tempos da vida. Uma está nascendo e a outra partindo. É importante ter esse momento de interação. É uma questão de fé para nós que sabemos, que acreditamos na energia gerada nisso tudo. É um momento de pura cura, alegria, de renovação de todos os caminhos", analisa Márcia, que teve a oportunidade de estar na celebração do aniversário da Vó Francisca, realizado em 2019.
"A gente pede saúde, felicidade, amizade, corretivo para o outro. O que sabe ensina. O que não sabe aprende com outra pessoa. O correto é esse aí", explicou Vó Francisca sobre o que pode ser pedido a São Cosme e São Damião. "Eles curam de muita coisa. É só pedir. Eles são trabalhadores. Eram médicos, muito experientes de todas as coisas. Crianças, parteiras, São Cosme e Damião ajudam. Eles foram batizados em Aruanda. O que a gente pedir, eles estão prontos para conseguir para nós", reforça.
Vó Francisca lembra que desde a época em que morava no sítio já celebrava São Cosme e Damião, oferecendo um "quebra-torto" de bolo de arroz com leite ou chá de folhas de colônia para as crianças que moravam nas redondezas. "Bem cedo arrumava a mesa na beira da cozinha, cortava bolo, enchia prato, criançada chegava e comia. De repente um vinha e dizia vó mamãe pediu um pedaço de bolo. Tudo comia. Saia tudo feliz. Era abraço, beijo das crianças para mim", conta sorridente.
Márcia Moreira ainda analisa que a comemoração pedida por Vó Francisca é uma forma de blindar essas crianças que participam do preconceito. "Isso vai fazer parte da memória das crianças. Estive em uma festa de Cosme e Damião, comemorando o aniversário da Vó Chica. É importante porque o preconceito vai chegar até essa criança ensinado por um adulto e ela terá memória de um momento bom, de esperança. É uma forma para resistir e dizer não ao preconceito". A dirigente pontua que a intolerância religiosa ainda é muito presente e que na cidade onde mora foi confeccionada até mesmo uma cartilha recomendando que as pessoas não aceitem doces de Cosme e Damião por serem coisa do "demônio". "A ideia é causar medo mesmo".
Pedidos
Sob a ótica umbandista, a energia de Cosme e Damião pode ser solicitada em um momento de aflição, por exemplo. "Em todos os momentos de aflição, seja em oração, seja acendendo uma vela, a pessoa deve se concentrar se voltando a santa e sagrada hora do nascimento dela ou para quem for o pedido. Para a espiritualidade as mães tem fila preferencial. Quando uma mãe evoca a sagrada hora de nascimento em um momento de aflição ela é ouvida. Os ceús clamam por atenção a ela. Mas nós podemos fazer esse movimento por nós", explica Márcia Moreira.
Ela reforça que quando nascemos somos plenos de amor. "Esse amor envolvido, essa energia está no nosso inconsciente, marcado no nosso espírito. É uma reserva. Podemos acionar como uma forma de superar dificuldades. É valioso evocar não só em momentos de aflição, mas também de gratidão e bençãos. É muito valioso acessar essa gaveta especial que temos no nosso inconsciente".
"Para nós o mês de Cosme e Damião é importante em vários aspectos. Primeiro a gente faz um movimento de renascimento. Renasce na estação da primavera, nesse propósito de renascer em flor, como as flores. É um sentido vibratório importante para nós. Celebramos o início da primavera na mesma semana de Cosme e Damião. Isso traz um sentido de esperança, renascimento. A natureza após passar pelo inverno, pelo recolhimento, se coloca em movimento, nasce novamente. Cada vez que nos colocamos no renascimento a gente também se organiza e tem o propósito de renascer melhor", assevera.
"A natureza faz e nós temos a capacidade de a cada nascimento ser melhores que a versão anterior. A esperança através do renascimento, renascer na alegria, porque cura, constrói".
Márcia ainda lembra que a alegria é solidária. E a alegria é a marca de Cosme e Damião. "Quando estamos alegres queremos que todos estejam gargalhando, sorrindo. Isso cura, contagia, solidariza. Renascemos com a pureza, deixando para trás as experiências negativas, os sentimentos negativos. Renascemos na pureza de que o amor vale a pena, tem chance sim e o amor é a nossa essência. Esse mês é de muita importância para nós. Quem participa e compartilha isso, não deixe de fazer porque realmente é o nosso ápice de expressão de fé solidária, fraterna, fé que quer realmente alcançar a todos que estão em busca de algo para despertar, motivar", salientou.
Sonho
Abraão Ribeiro além de devoto de Cosme e Damião, também é pai do Abrahim, que hoje está com sete anos e faz questão de participar dos festejos. Abraão garante que tudo por iniciativa própria. O comunicador afirma que sonha com a chance de o filho continuar com a tradição de realizar os festejos de Cosme e Damião. "Ano passado conseguimos que a data de Cosme e Damião entrasse no calendário oficial de comemorações de Cuiabá. Agora é patrimônio cultural. Queria muito que meu filho continuasse com essa tradição e expandisse. A minha intenção é montar a Fundação Cosme e Damião, onde seriam centralizadas ações de lazer, cultura, arte, no turno e contraturno de escola para as crianças, além de atendimento à saúde, não só para as crianças, mas também para os seus familiares", revela.
Grato pela graça alcançada, Abraão afirma que Cosme e Damião são tudo em sua vida. "Sou devoto. Tenho uma patota que cuida de mim. Me sinto completamente protegido. Sou muito agradecido por ter essa proximidade com eles. Sei que sou bem cuidado, assim como minha família e amigos. É uma linha que não pede nada em troca e tem uma força e luz enormes. Cosme e Damião na minha vida são tudo".