"Pequenas Vinganças", livro recém-lançado do jornalista e escritor Edney Silvestre que reúne duas novelas e sete contos inéditos, trata em suas tramas do ódio sugerido em seu título. Mas as vinganças que brotam das narrativas –que cruzam da Guerra do Paraguai à pandemia de Covid-19, passando pelas violências (a cotidiana e a extraordinária) e pelas negociatas da ditadura militar instaurada em 1964 e do Estado Novo –contemplam uma certa justiça, torta mas pertinente. Uma ideia de reparação, enfim.
"Tem reparação e sobrevivência. Como se os personagens dissessem 'não vão acabar comigo'", diz o autor. Os tais personagens que buscam reparações são filhos de opressões históricas intrínsecas à formação e ao desenvolvimento da nação brasileira.
Eles vão desde a mulher de classe alta dos anos 1930 que tem o casamento encerrado num acordo entre seu pai e seu marido, por interesses econômicos e políticos; o menino que se vê preso com os pais num carro em meio a um tiroteio na avenida Brasil; a travesti que visita diariamente no hospital o homem em coma que a salvou de uma agressão homofóbica; até o antigo combatente da Guerra do Paraguai abandonado pelo Estado e traumatizado pelas crianças paraguaias que ele matou a sangue-frio no campo de batalha.
"Degolaram crianças ali em nome da liberdade, da nação. Há um mito que hoje se desfaz de que a nação foi formada dentro da paz, da harmonia, do entendimento. Isso é uma balela, tivemos revoltas. Em Canudos dizimaram pessoas em defesa desse ideal de país, gente que tinha apenas enxadas, foices", lembra Silvestre. "A história da nossa crueldade se reflete até hoje, nessas matanças que acontecem em operações policiais em áreas densamente povoadas."
É nesse contexto, portanto, que surgem as pequenas vinganças sobre as quais se ergue o livro. Silvestre acredita que "podemos transformar esse país e devemos conseguir". Argumenta porém que, como apontam suas tramas, "não vai ser sorrindo". "A hostilidade do outro lado se torna cada vez mais assassina. A vingança é uma forma de justiça possível. A única justiça possível para muita gente. Pelo menos um alívio."
"Pequenas Vinganças" nasceu a partir do desejo de Silvestre de retomar dois personagens de seu romance "Vidas Provisórias", lançado originalmente há dez anos. Paulo e Anna aparecem agora na novela "Anna", que encerra o livro.
Casados e com dois filhos, eles passam pelas dores dos momentos finais da vida dela, com sua memória afetada pela demência que se instalava. "Perdi várias pessoas queridas nos últimos anos. É muito doloroso. Queria falar disso", diz o autor.
Escrito ao longo dos últimos quatro anos, o livro foi alimentado pela realidade brasileira no governo Bolsonaro, ressalta o autor. "A cada vez que esse presidente que está saindo aparecia naquele cercadinho com aquelas palavras cheias de rancor, eu sentia uma náusea. Me deu engulhos sua imitação de uma pessoa com falta de ar, ele arrancar a máscara de uma criança em meio à pandemia. Esse homem veio destruindo nossa cultura, a possibilidade de trégua, de saúde. Vou usar a palavra certa –de bondade. Ele vinha destruindo a possibilidade de bondade. As personagens brotaram daí".
Há ali também memórias pessoais de Silvestre. O universo rural que aparece em cenas da novela "Entretanto" e no conto "Piedad, Señor" tem muito de sua vivência em Valença, cidade do interior fluminense onde o escritor nasceu.
"Piedad, Señor" vai além –o personagem central é baseado numa história familiar de Silvestre. "A medalha da Guerra do Paraguai era do pai do meu avô, me baseei nele para construir o personagem. Inclusive o fato de ele sumir e ir morar numa toca de pedra", diz, se referindo ao destino do personagem que, como muitos outros, não viu se cumprirem as promessas do Estado de que seriam recompensados pela participação no combate.
Pesquisando as batalhas das quais ele participou, Silvestre descobriu que ali foram cometidas atrocidades contra crianças pelos soldados brasileiros –elas haviam sido convocadas pelo fato de os adultos e adolescentes do país terem sido dizimados na guerra.
"As histórias sobre ele sempre falavam de um pai doce, um homem que cortava gominhos de cana-de-açúcar para dar às crianças, uma cena comum no interior, um gesto de amor. Esse mesmo homem cortava gargantas. Isso me fez pensar nessa destruição de vidas que o Brasil é capaz de causar."
Nem sempre as vinganças são trágicas ou drásticas. No conto que dá título ao livro, Dona Carmem, a mulher rica que serve como mero bibelô do marido frente à alta sociedade, se rebela à sua maneira, em pequenos movimentos. "Ela corta o cabelo e pinta de louro, joga no bueiro o anel da família, trava uma cumplicidade com uma prostituta para quebrar os carros do marido", lista o autor.
As narrativas curtas de "Pequenas Vinganças" permitiram ao escritor o exercício da criação de diferentes vozes para os personagens que circulam por muitas realidades sociais e épocas. A voz do assassino de aluguel de "Entretanto", por exemplo, se permite uma agressividade machista e racista, como quando se refere à recepcionista de uma locadora de automóveis como "uma mulatinha toda gostosinha, apertadinha no uniforme verde e amarelo da companhia nacionalista de carros de aluguel".
"O personagem brotou com aquela voz preconceituosa. A editora chegou a sugerir que tirasse isso, para evitar o cancelamento. Cancelamento de quem? Do personagem? Ele é um assassino", defende o escritor, apontando o contraste entre a voz de outros dois personagens.
"O início do conto de Dona Carmem é descritivo, absolutamente diferente das outras formas narrativas dentro do livro. Ela está vendo o sol que surge, as cores púrpuras por trás da pedra do Arpoador. Uma visão que o menino sacrificado numa operação policial em outro conto jamais teria, porque ele jamais teria a vista e a vida daquele apartamento do 15º andar. Ele fala em frases curtas, aflitas." Diferentes vozes para uma mesma necessidade de vingança.
PEQUENAS VINGANÇAS
Preço R$ 54,90 (160 págs.); R$ 34,90 (ebook)
Autor Edney Silvestre
Editora Globo Livros