Documentos da CPI da Covid expõem contradições do time do ministro Paulo Guedes (Economia) sobre a elaboração da MP (medida provisória) das vacinas. Negacionismo e preocupação com risco fiscal atrasaram a compra com a Pfizer.
A CPI da Covid no Senado quer saber por que um dispositivo que facilitava a aquisição de vacinas da Pfizer e da Janssen foi eliminado da MP publicada em janeiro. Uma das minutas autorizava a União a assumir riscos e custos de eventuais efeitos adversos dos imunizantes, exigência das farmacêuticas.
Em resposta à comissão, a pasta de Guedes disse que só foi chamada a se manifestar na sanção, em março. Porém documentos mostram a participação do Ministério da Economia em debates de minutas em dezembro.
Planalto e Economia se alinharam contra exigências da farmacêutica americana. A resistência abriu a porteira da Saúde para a série de negociações suspeitas na aquisição de imunizantes.
O presidente Jair Bolsonaro e Guedes temiam, além de eventuais efeitos colaterais, a ameaça de judicialização. Futuras ações poderiam aumentar o passivo financeiro da União.
A decisão do governo de cortar o artigo retardou o negócio. O contrato com a Pfizer só foi assinado em 19 de março graças a uma lei de iniciativa do Congresso que permitiu repassar o ônus ao poder público.
Nesse intervalo: 1) um cabo da PM negociou com a Saúde para fornecer vacina da AstraZeneca e disse ter recebido pedido de propina de US$ 1 por dose; 2) a pasta cogitou comprar Coronavac pelo triplo do preço; 3) um servidor relatou pressão atípica na aquisição da indiana Covaxin. Todos os três casos foram revelados pelo jornal Folha de S.Paulo.
A Saúde ainda contratou, nesse período, dez milhões de doses da Sputnik a cerca de US$ 12 por unidade, por meio do laboratório União Química, enquanto governadores do Nordeste compraram a mesma vacina do Fundo Russo de Investimento Direto por cerca de US$ 10.
Em despacho enviado à CPI, o secretário-executivo adjunto da pasta comandada por Guedes, Miguel Ragone de Mattos, afirmou que "a manifestação do Ministério da Economia relativa à referida medida provisória restringiu-se à fase de sanção do projeto de lei de conversão nº 1, de 2021, no sentido de não haver na matéria tratada competência afeta".
Parecer jurídico da Saúde recomendava a avaliação do dispositivo da responsabilidade da União pelo Ministério da Economia, "eis que a matéria insere-se dentre sua área de competência". A análise nunca foi feita.
O documento assinado por Marcilândia Araújo, coordenadora-geral de Assuntos de Saúde e Atos Normativos do Ministério da Saúde, ainda lembrou que dispositivo equivalente já existia na Lei Geral da Copa, na qual o governo assumiu responsabilidades relacionadas ao torneio e ficou autorizado a oferecer garantias e contratar seguros.
À Folha de S.Paulo o Ministério da Economia afirmou que não foi chamado a emitir um parecer e admitiu, embora não tenha apresentado esta resposta quando questionado pela CPI, a participação em discussões do texto da MP.
A pasta afirmou ainda que não se opôs a garantias e contratação de seguros. O posicionamento entra em choque com depoimentos do ex-ministro Eduardo Pazuello (Saúde) e do ex-secretário-executivo Elcio Franco.
Sob o juramento de falar a verdade, eles disseram que houve impasse entre os ministérios. Franco foi além e culpou o time de Guedes.
"Aquele material [artigo da responsabilidade, garantias e seguro] foi retirado do texto dela [a minuta], por falta de consenso, como foi colocado. E foi particularmente do Ministério da Economia."
O vice-presidente da CPI, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), afirmou então que Guedes teria de ser convocado. Franco disse se referir à equipe, não ao ministro. O senador cobrou explicações da pasta.
Fontes que acompanharam os debates sobre negociações com a Pfizer relataram à reportagem a resistência da Economia. O tema foi tratado por Pazuello, Guedes e Walter Braga Netto (então na Casa Civil), entre outros ministros.
Em uma reunião, ainda antes da elaboração da minuta da MP, Guedes se opunha à cláusula da Pfizer. Para ele, o assunto era privado e deveria se restringir à empresa interessada na venda e a quem aceitasse receber a dose.
Apesar de ter demonstrado oposição à compra por eventuais custos futuros à União, Guedes não apresentou uma estimativa de gastos. A argumentação foi genérica, de acordo com relatos de participantes do encontro.
A conversa entre os ministros não foi conclusiva. O Ministério da Economia afirmou que não comenta reuniões de Guedes com outras autoridades.
Posteriormente, a supressão do artigo pegou de surpresa técnicos da Saúde que trabalharam na elaboração da MP. Eles não foram informados do porquê da mudança.
Já técnicos da Economia afirmaram que estiveram em reuniões no Planalto sobre o tema. Contudo, negaram ter participado da construção do texto.
Uma fonte afirmou que a pasta chegou a iniciar discussão interna informal sobre o artigo exigido pela Pfizer, mas o debate não prosperou porque o dispositivo teria sido removido do texto antes de qualquer demanda formal.
Em dezembro, os debates foram conduzidos pela Casa Civil. Em paralelo, mais duas MPs estavam em jogo –uma, já editada, tratava da adesão ao consórcio de compra de vacinas Covax Facility e outra, de liberação de recursos.
No dia 14 de dezembro, à noite, na porta do Alvorada, veio a público a ideia do chamado termo de consentimento informado quando Bolsonaro anunciou que editaria a medida para destravar dinheiro para imunizantes.
"Eu devo assinar amanhã a MP de R$ 20 bilhões para comprar vacina. Não obrigatório, vocês vão ter que assinar termo de responsabilidade para tomar", disse Bolsonaro a apoiadores.
No dia seguinte, o presidente e o ministro Luiz Eduardo Ramos, à época na Secretaria de Governo, tiveram encontro com o deputado Geninho Zuliani (DEM-SP). O congressista era o relator da MP do Covax Facility.
Naquele dia, Zuliani disse que o presidente havia pedido a inclusão do termo de consentimento no relatório porque ele e equipe estavam preocupados com a criação de passivo financeiro.
"[Vacinados] poderão até utilizar esse dispositivo [do contrato da Pfizer] para ingressar com ações contra a União, e a gente não sabe mensurar isso e o tamanho dessa judicialização que pode comprometer lá na frente um valor muito vultuoso para a União", disse Zuliani em entrevista à rádio Jovem Pan.
Questionado sobre o argumento, Randolfe Rodrigues criticou. "É de uma burrice atroz, é de um despreparo. Seja do Bolsonaro, seja do Guedes, a única coisa que posso dizer é que é uma ignorância atroz. Do ponto de vista humanitário, é de uma insensibilidade com o drama da pandemia naquele momento. Do ponto de vista econômico, é de uma ignorância total", afirmou o vice-presidente da CPI.
Na ocasião, Zuliani desistiu da ideia do termo de consentimento –mas o governo não.
Segundo documentos em poder da CPI, também em 15 de dezembro, surgiu a primeira minuta da MP da compra das vacinas. Nela constava o dispositivo que transferiria ao vacinado o ônus por efeitos adversos.
"Entendo que tal disposição é de constitucionalidade duvidosa", escreveu Rafael Carrazzoni Mansur, coordenador-geral de Análise Jurídica de Licitações, Contratos e Instrumentos Congêneres do Ministério da Saúde.
Em 17 de dezembro, Bolsonaro publicou a MP com a liberação de recursos. O texto é assinado pelo presidente e por Guedes. No mesmo dia, veio o ataque à farmacêutica americana: "Se você virar um jacaré, é problema seu", disse.
No dia seguinte, a Câmara aprovou a MP do Covax Facility, sem o termo de consentimento, que também desapareceu em 23 de dezembro da minuta do texto da compra das vacinas, dando lugar ao artigo da responsabilidade da União.
Essa MP foi então publicada em edição extra do DOU (Diário Oficial da União) no dia 6 de janeiro, sem termo de consentimento, sem acatar a exigência da Pfizer e sem a assinatura de Guedes.
Procurado, o Ministério da Saúde disse que o tema era da Casa Civil, que, por meio da Secom (Secretaria Especial de Comunicação Social), afirmou que "todos os esclarecimentos solicitados pela CPI já foram devidamente encaminhados pelas pastas demandadas".
Após negar, Economia diz ter atuado em MP das vacinas Depois de afirmar à CPI da Covid que não atuou na formulação da MP da vacina, o Ministério da Economia disse à Folha de S.Paulo que participou de reuniões na fase final de elaboração do texto.
Em resposta a requerimento da CPI, a pasta se limitou a dizer que apenas se manifestou no momento de sanção da medida, ressaltando que não encontrou documentação referente à formulação do projeto.
Após ofícios apresentados por outros órgãos contradizerem a alegação, a Folha de S.Paulo enviou uma série de questionamentos à pasta, que reconheceu ter participado de agendas sobre a MP no Palácio do Planalto.
"O Ministério da Economia participou de reuniões na fase final de elaboração do texto. Não é incomum áreas técnicas do Ministério da Economia serem chamadas a reuniões, mesmo que não definida ou confirmada a competência desta pasta para a assinatura de propostas", afirmou.
Em nota, a pasta disse que participa de todas as reuniões convocadas pelo Palácio do Planalto no intuito de estar disponível a contribuir caso o assunto em questão necessite, mas não se posiciona em matéria que não está sob sua competência.
O órgão ressaltou que não recebeu solicitação formal para elaborar pareceres sobre o assunto, "motivo pelo qual não foram proferidos". A Casa Civil não respondeu por que não fez o pedido formal.
A pasta disse que a MP das vacinas era de atribuição setorial do Ministério da Saúde, não afeta à Economia e, por essa razão, não fez análise técnica ou estimativa de impacto fiscal sobre a proposta.
Versão preliminar do texto trazia a assinatura do Ministério da Economia entre os órgãos responsáveis por sua edição. Em relação a esse ponto, o órgão afirma que não deu aval para a inclusão.
"Durante a construção de medidas provisórias pode haver sugestão de assinatura por várias pastas, até que se defina quais delas estão efetivamente ligadas ao assunto. A inclusão da assinatura do Ministério da Economia em qualquer minuta elaborada não contou com a anuência do Ministério da Economia, pois se trata de questão setorial do Ministério da Saúde", disse.
Sobre os debates, a pasta afirma que efetivamente houve participação de seus servidores em reuniões de caráter técnico.
"No caso específico das reuniões em questão, não houve por parte da SOF (Secretaria de Orçamento Federal), nem do secretário-executivo adjunto, sugestão de inclusão ou exclusão do artigo 5º da Medida Provisória. As opiniões eventualmente emitidas pelos técnicos da secretaria presentes nas reuniões citadas se referiram apenas às necessidades de estimativas de impacto orçamentário, conforme exigido pela legislação vigente, no caso de eventual responsabilização da União", disse.
Especificamente em relação ao artigo que previa a responsabilização da União por eventuais efeitos adversos, o ministério informou que fez "apenas discussão de questões relacionadas ao tema e ao texto da proposta, sem fechamento de questão".
"O Ministério da Economia não se posicionou contrariamente, tendo sido apenas discutidas nas reuniões questões relacionadas ao tema e ao texto da proposta", afirmou.
Segundo a pasta, mesmo não sendo coautor da MP, Guedes determinou que as equipes técnicas deveriam colaborar, se demandadas, mas não deu orientação para que se posicionassem contrariamente ao artigo.
CRONOLOGIA DOS EMAILS E DO IMPASSE COM A PFIZER
Pedido de audiência (31.jul.20)
Pfizer pede audiência urgente com a Saúde. País registrava 92,5 mil mortes
Proposta formal (14.ago.20)
Empresa envia a proposta formal para fornecimento de futura vacina. Previsão era de 70 milhões de doses, acima dos 30 milhões discutidas anteriormente
Validade de proposta (29.ago.20)
Data-limite da primeira oferta da farmacêutica. Não há documento entregue pela Pfizer à CPI referente a este dia. Mortes por Covid-19 passam de 120 mil
Reunião (13.nov.20)
Ministério confirma reunião com a Pfizer para 17 de novembro. País chega a 165 mil mortos
Contrato assinado (19.mar.21)
Governo assina contratos com Pfizer e Janssen. País ultrapassa a marca de 290 mil mortos pela doença