NOTICIÁRIO Quinta-feira, 07 de Agosto de 2025, 14:53 - A | A

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DEFESA DA DEMOCRACIA

Em livro, Gilmar Mendes defende STF contra ‘liberdade para destruir’

Mauro Camargo
Da Editoria

Em uma noite de simbolismos e reflexões profundas, sob as luzes sóbrias da Biblioteca do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Gilmar Mendes lançou, na terça-feira, 6 de agosto, sua mais recente obra, “Jurisdição constitucional da liberdade para a liberdade”. Diante de uma plateia composta por ministros, juristas, acadêmicos e autoridades, o decano da Corte não apresentou apenas um livro, mas uma tese vigorosa sobre o papel contemporâneo das Supremas Cortes em um mundo assombrado por tempestades, literais e metafóricas. A obra, que reúne os discursos de sua investidura como doutor honoris causa pela Universidade de Buenos Aires (UBA) em 2024, transcende o registro de uma homenagem acadêmica para se firmar como um manifesto em defesa do que Mendes conceitua como a terceira e mais crucial fase da jurisdição constitucional: a sua função como trincheira da própria ordem democrática.

O evento, mais do que uma celebração de autoria, foi um convite à celebração do livro como objeto perene de transmissão de ideias. "Hoje, celebramos. Não o autor, mas o objeto criado", iniciou Mendes, evocando o poder da palavra escrita como "uma defesa contra as ofensas da vida", citando o poeta Cesare Pavese. Em um mundo dominado pela efemeridade das redes sociais, que, segundo ele, podem ter usurpado do livro o posto de "ópio do Ocidente" cunhado por Anatole France, o ministro defendeu a permanência do pensamento estruturado como um ato de resistência. E o substrato de sua nova obra, como fez questão de frisar, é a generosidade intelectual, um valor que tece a teia de relações que fundamentam o pensamento exposto nas páginas.

Essa teia tem um nome central: Peter Häberle, o renomado jurista alemão a quem Mendes se refere como seu "distinto mestre e amigo". É a partir da influência de Häberle que se compreende a gênese do livro. Mendes recordou o talento proverbial do mestre para cultivar uma "espécie de República das letras", um círculo global de amizades acadêmicas baseado na "sinceridade e no respeito". Foi dentro dessa república intelectual que Häberle, há três décadas, incumbiu o jurista argentino Raúl Gustavo Ferreyra de uma missão: "você e o Gilmar deveriam se conhecer e trabalhar por uma sociedade aberta". O encontro formal só ocorreria em 2023, mas a afinidade intelectual, forjada pelo mestre em comum, já os tornava, nas palavras de Mendes, citando o historiador romano Salústio, "amigos decenais", pois "querer e não querer as mesmas coisas é a verdadeira amizade".

Essa conexão transnacional não é um mero detalhe biográfico, mas a chave para entender a tese central do livro. A obra compila os discursos da cerimônia na UBA, ocorrida em 30 de agosto de 2024, um dia em que Buenos Aires era castigada pela tradicional "Tormenta de Santa Rosa". Mendes traçou um paralelo direto entre o fenômeno climático e o momento político atual. "Quase um ano depois, também estamos numa tempestade, embora metafórica, para bem ou para o mal", afirmou, antes de sentenciar com um adágio de resiliência: "Tudo bem. Mar calmo nunca fez bom marinheiro". É nesta metáfora náutica que ancora o título e o argumento da obra: a jurisdição constitucional, historicamente um instrumento de garantia de direitos individuais, evoluiu para assumir, contemporaneamente, o papel de garante da própria ordem democrática que a sustenta.

Para Mendes, a democracia moderna não pode ser uma espectadora passiva do arbítrio. Ela não pode assistir "incólume os que gritam por liberdade quando essa exprime uma liberdade para destruir a ordem constitucional". Aqui, o ministro introduz um conceito fundamental que permeia todo o seu discurso: a democracia é, por natureza, "defensiva (ou combatente, como queiram)". Essa ideia, de uma democracia que luta ativamente por sua sobrevivência, é o fio condutor da grande aventura histórica que Mendes se propõe a narrar, a invenção e evolução de um tribunal especializado para defender a Constituição, contada em três capítulos distintos.

O primeiro capítulo, segundo a narrativa do ministro, foi redigido pelo gênio jurídico de Hans Kelsen. Com a Constituição da Áustria de 1920, o mundo conheceu uma inovação institucional revolucionária: a Corte Constitucional. Fruto da lavra de Kelsen, esse tribunal, competente para julgar de forma concentrada e em abstrato, era o orgulho de seu criador, que se referia à jurisdição constitucional como sua "filha favorita". Contudo, Mendes pondera que, nesse estágio inicial, essa Corte, embora eficaz para dirimir conflitos federativos, era "pouco aparelhada para processar violações individuais a direitos". Era uma guardiã da estrutura do Estado, mas ainda distante do cidadão comum. Esse modelo, conhecido como controle concentrado, focava na pureza do ordenamento jurídico, tratando a inconstitucionalidade como uma questão de lógica e hierarquia normativa, sem necessariamente se debruçar sobre as consequências práticas para o indivíduo. A preocupação era com a coerência do sistema, não com a proteção subjetiva, uma característica que seria profundamente revista nas décadas seguintes.

A história avança para o segundo capítulo após a derrota dos totalitarismos na Segunda Guerra Mundial. A partir de 1945, o mundo viu florescer ordens constitucionais que redefiniram a relação entre o indivíduo e o Estado. A cidadania passou a ser lastreada em direitos fundamentais, que, por sua vez, geravam obrigações universais para os órgãos estatais. A dignidade da pessoa humana, antes um postulado filosófico, transmutou-se em norma juridicamente vinculante. Com essa mudança, instalou-se um "importante consenso civilizatório": a mera proclamação de direitos seria inócua se não pudesse interferir concretamente na realidade constitucional. Os catálogos de direitos deixaram de ser meras cartas de intenção para se tornarem o núcleo vinculante do poder estatal.

Mendes recorre ao jurista italiano Mauro Cappelletti para explicar a solução encontrada. Cappelletti percebeu que as violações a direitos fundamentais não poderiam receber o mesmo tratamento das disputas patrimoniais privadas. A resposta foi elevar os direitos fundamentais da condição de meras "normas programáticas" para o status de "normas preceptivas". Isso se deu por meio da institucionalização de uma "jurisdição constitucional das liberdades", ou, na precisa e influente expressão da doutrina alemã, Grundrechtsgerichtsbarkeit. O termo, segundo Mendes, fez fortuna no Ocidente não por sua sonoridade, mas por responder a um problema transnacional. "Nos lugares em que o modelo do Estado Constitucional germinou, a institucionalização procedimental da tutela de direitos fundamentais foi prontamente assimilada pelas respectivas sociedades civis", explicou. Demandas por melhorias de vida, saúde, educação e liberdade passaram a ser expressas na gramática dos direitos fundamentais e veiculadas pelos tribunais, que se tornaram arena central para a realização das promessas constitucionais.

O Brasil pós-Constituinte de 1987-1988 se insere diretamente nesse segundo capítulo. O processo de redemocratização, ressalta o ministro, investiu maciçamente no fortalecimento das instituições de controle, com especial destaque para o Poder Judiciário. "Este sempre estará disponível para o cidadão brasileiro quando os Poderes Executivo e Legislativo se omitirem no cumprimento de seus deveres de proteção", afirmou. Mendes reconhece que se pode apontar "algum excesso na solução adotada", um fenômeno por vezes criticado como "judicialização da política", mas defende que a ênfase da Constituição de 1988 no Judiciário não foi "descolada do tempo e do espaço". Pelo contrário, encontrava justificativa na dura realidade de exclusão social que o país buscava transformar, com "índices que faziam corar frade de pedra". A Constituição Cidadã deliberadamente abriu as portas do Judiciário para que a sociedade civil pudesse cobrar as promessas de um Estado de bem-estar social ainda em construção.

Mas a história, como bem sabe o ministro, não havia chegado ao fim. E é então que ele apresenta o terceiro e mais urgente capítulo, um diagnóstico formulado por seu amigo argentino, Raúl Gustavo Ferreyra. Vivemos, segundo essa visão, uma época paradoxal e perigosa, em que "as liberdades fundamentais são invocadas para destruir a estrutura político-jurídica que as possibilita, o Estado Constitucional". Este é o ponto nevrálgico da obra e do discurso, uma alusão direta aos movimentos iliberais que ganham força globalmente. A tarefa de manter a supremacia da Constituição, argumenta Mendes, tornou-se indissociável da manutenção da própria ordem democrática. Não basta mais proteger o indivíduo do Estado; é preciso proteger o Estado democrático de indivíduos e grupos que usam as ferramentas da liberdade para implodi-lo por dentro.

Diante desse novo desafio, desenvolveu-se, globalmente, uma nova fase da jurisdição constitucional, funcionalmente orientada para a preservação da democracia. Mendes a batiza de "jurisdição constitucional para a liberdade". Nesse novo paradigma, Tribunais Constitucionais e Supremas Cortes carregam, mais do que qualquer outro juiz, a "responsabilidade política própria de manter o Estado de Direito e a sua capacidade regular de funcionamento". A hostilidade de tiranos e aspirantes a autocratas contra esses tribunais, portanto, não deve ser vista como indignação cívica, mas como o mais puro "arbítrio". É a reação daqueles que desejam governar sem os freios e contrapesos essenciais à democracia, e os ataques às cortes de cúpula são o primeiro passo para desmontar o sistema de garantias.

Nesse contexto, Mendes elogia a visão dos constituintes de 1988 ao conferir robustas garantias institucionais ao Poder Judiciário brasileiro e, nomeadamente, ao STF. E celebra, com visível satisfação, uma recente medida de proteção adotada na Alemanha, terra de seu mestre Häberle. Em dezembro de 2024, em uma reação aos temores de ascensão da extrema-direita, o Parlamento alemão emendou a Lei Fundamental de Bonn para inscrever na própria Constituição diversas garantias de funcionamento do Tribunal Constitucional que antes estavam apenas em lei ordinária, tornando-as mais difíceis de serem alteradas por maiorias políticas eventuais. O gesto é interpretado pelo ministro como um sinal claro dos tempos: "Onde o pulso ainda pulsa, a jurisdição constitucional tem sido acionada para garantir a liberdade".

Ao concluir, Gilmar Mendes ofereceu uma visão mais pessoal do livro, revelando que, em vários trechos, os capítulos institucionais se confundem com passagens de sua própria trajetória. Essa característica, presente tanto em seu texto quanto na laudatio do professor Ferreyra e nas apresentações de outros acadêmicos, representa, para ele, uma forma de "voltar às origens" em "tempos de tribulação". É uma reconexão com a dedicação de uma vida, especialmente à jurisdição constitucional.

Em um momento de leveza e afeto, Mendes brincou com a famosa frase de Kelsen. "Não vou dizer que ela é minha filha favorita, como fez Kelsen, porque nem a inventei e, ainda que o fizesse, minha filha preferida é a Laura, claro", disse, arrancando sorrisos da plateia. Mas a seriedade retornou em sua fala final, carregada de orgulho pelo objeto que entregava ao público. Olhando para o significado da jurisdição constitucional para a história do direito ocidental e do Brasil, ele afirmou que "valeu a pena ter virado algumas noites ajudando a escrever algumas linhas desse grande e belo livro". Um livro que, em suas palavras, se firma como uma obra perene, que, "com todos os seus limites, é, sem dúvida, uma ode à civilização". Uma defesa articulada, histórica e profundamente pessoal da democracia, no momento em que ela mais precisa ser defendida.



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