O garimpo ilegal na Terra Indígena (TI) Yanomami cresce a um ritmo inédito desde o início deste ano, como revela um levantamento composto com imagens de satélite e fotografias aéreas produzidas no início de abril. Só no primeiro trimestre deste ano a devastação visível correspondeu a 200 hectares, cerca de 10% de toda a devastação acumulada em dez anos.
O estudo foi feito por uma equipe de pesquisadores a serviço da Hutukara Associação Yanomami e deve ser divulgado nesta terça-feira (25). Ele dá continuidade ao monitoramento feito ao longo do ano passado, que foi marcado por um recorde histórico: foram 500 hectares, que se somaram a 1.700 hectares de floresta destruídos desde o início da década passada, quando o garimpo intensivo voltou à área habitada pelos yanomamis e ye'kwanas, nos estados de Roraima e Amazonas.
Com isso, a área total ocupada pela mineração ilegal hoje é de cerca de 2.400 hectares, o correspondente a 2.400 campos de futebol do tamanho do Maracanã. Se o desmatamento continuar no ritmo do primeiro trimestre, 2021 pode atingir 800 hectares, metade da área destruída na floresta até 2019.
Desde o início da crise econômica mundial, em 2008, o aumento do preço internacional do ouro e a desvalorização do real voltaram a tornar atraente a atividade criminosa em terras indígenas.
"O levantamento mostra que está cada vez mais aumentando o garimpo ilegal na TI Yanomami. Estamos chamando a atenção das autoridades brasileiras, do governo federal, porque isso está repetindo o que aconteceu nos anos 1980, em 1993, quando aconteceu o genocídio de Haximu. Hoje detectamos a presença de cerca de 20 mil garimpeiros, crescendo nos últimos dois anos", explica Dário Kopenawa, dirigente da Hutukara e filho do líder histórico dos yanomamis, Davi Kopenawa.
Em 1993, um grupo de garimpeiros matou todos os habitantes que encontraram em uma comunidade chamada Haximu, naquele que é o único caso condenado pelo crime de genocídio na história do país. Solto, o líder do grupo voltou a atuar como empresário de garimpo na TI Yanomami.
Os pesquisadores da Hutukara usaram imagens produzidas nos três primeiros meses do ano pela constelação de satélites Planet, um conjunto de equipamentos orbitais privados, de alta precisão, que tem entre seus clientes o Estado brasileiro (a Polícia Federal) e organizações de monitoramento ambiental, como Mapbiomas.
Junto com as imagens feitas pelos satélites, a entidade indígena produziu também fotografias aéreas, para comprovar as projeções feitas e evitar enganos como os provocados pela presença de nuvens, que atrapalham a precisão da imagem, ou distorções entre fotos produzidas por satélites com ângulos diferentes de visão da Terra. Os sobrevoos foram realizados entre os dias 7 e 9 de abril.
O estudo compara a área de destruição atual com imagens coletadas em dezembro de 2019 e em dezembro de 2020. Um relatório sobre esse monitoramento do ano passado foi divulgado em março, com o nome de "Cicatrizes na Floresta - Evolução do Garimpo Ilegal na TI Yanomami em 2020". Logo em seguida, no entanto, o aumento visível da atividade garimpeira e a violência de alguns ataques levaram a Hutukara a analisar os desdobramentos no primeiro trimestre do ano. A análise das imagens de satélite foi realizada pelo geógrafo Estêvão Senra, assessor técnico da Hutukara, com fotografias aéreas de Christian Braga, da equipe do Greenpeace.
As imagens impressionam pela magnitude da destruição e pela profundidade das crateras que lembram a de Serra Pelada, maior garimpo a céu aberto do mundo, até esgotar o minério, no fim da década de 1980. As pessoas parecem pequenos pontinhos pretos em meio às imensas feridas de terra avermelhada abertas na floresta verde.
"Antes, a região do rio Uraricoera concentrava a atividade garimpeira. Hoje vemos a densificação da atividade em outros rios, com vilas inteiras se implantando, uma pulverização de estruturas de apoio que demandam investimento pesado. Nas fotos é possível ver restaurantes implantados, os barcos transportam produtos de comércio secundário típicos de atividade estável. Tudo isso mostra que os empresários se sentem seguros e não esperam operações de repressão, como de fato não tem ocorrido", explica o geógrafo Estêvão Senra.
Outro elemento visível nas fotos é a escala do investimento: o garimpo atual não tem nada a ver com aquela atividade artesanal de aventureiros pobres e isolados, presente na memória do país. O equipamento pesado e a estrutura das vilas formadas na região denunciam as grandes somas de dinheiro necessárias para tornar viável uma cadeia produtiva complexa e manter todas aquelas pessoas em atividade ilegal em um lugar distante e inóspito. Há um intenso fluxo de barcos, aviões e helicópteros transportando maquinário caro e pesado, que pode ser visto em algumas das imagens.
Até o início da década passada, o garimpo era feito com balsas equipadas de motores e mangueiras, usadas para impulsionar jatos de água contra as barrancas dos rios, liquefazendo a terra que, em seguida, é sugada por dragas e filtrada para separar resíduos sólidos (com eventual presença de ouro) da lama. A ação provocava danos visíveis em margens de rios. O investimento principal dos empresários eram o motor e o transporte e a venda de alimentos para os trabalhadores, em um regime de aviamento considerado análogo da escravidão pelo Ministério Público do Trabalho.
Nos últimos anos, a atividade passou a ter uso intensivo de capital, tornou-se uma mineração pesada e empresarial, com exploração de grandes áreas que invadiram a terra firme usando máquinas mais potentes e caras. Recentemente, garimpeiros que atuam no rio Mucajaí, dentro da TI Yanomami, divulgaram em redes sociais como desviaram o curso de um rio, numa complicada obra de engenharia para poder explorar o fundo do leito natural.
O estudo da Hutukara revela ao mesmo tempo o crescimento das áreas destruídas nos pontos já conhecidos de garimpo, principalmente na calha do rio Uraricoera, mas também detecta invasões de novas áreas, antes não exploradas, nas regiões chamadas de Kayanau, Homoxi e Alto Catrimani, nas bacias dos rios Mucajaí e Catrimani, em uma atividade surpreendente no curto prazo de um trimestre.
Entre as áreas novas estão pontos de garimpo no rio Parima, área montanhosa já próxima da fronteira com a Venezuela, habitada por yanomamis de pouco contato com não indígenas. Isso tende a acentuar os impactos negativos da presença de forasteiros, tanto pela sensibilidade maior a doenças quanto pela possível reação dos indígenas não acostumados com assédio. No ano passado, dois yanomamis foram mortos por garimpeiros em uma região do rio Parima já mais perto de sua foz no rio Uraricoera, indicando que os garimpeiros prospectavam a região.
Outra ocorrência que preocupa a Hutukara é a retomada da atividade garimpeira na região chamada de Serra da Estrutura, localização de uma comunidade isolada, chamada Moxihateteua. Há cerca de meio século, o grupo passou a viver nessa região onde até recentemente não havia presença de não índios. A Funai tem planejada a reconstrução de uma base de vigilância na região, mas os garimpeiros ilegais chegaram mais cedo.
"Eu sobrevoei a Serra da Estrutura. Os nossos parentes Moxihateteua estão em uma situação muito vulnerável, com dois pontos de garimpo, cada um a 15 km de onde vivem esses isolados, e eles estão se aproximando. Eu não sei amanhã ou depois de amanhã se eles não serão atacados", diz Dário.
Entre as áreas já conhecidas que se ampliaram está o chamado "Tatuzão do Mutum", na beira do rio Uraricoera, origem provável dos criminosos que têm atacado com armas de fogo a comunidade de Palimiú, desde o último dia 10, em reação à instalação de uma barreira sanitária contra Covid-19.
Um dos ataques foi feito quando havia policiais federais e militares do Exército na comunidade. Em outro, os assaltantes usaram bombas de gás lacrimogêneo. Em gravações, garimpeiros se referem a um barco da "facção". O crime organizado em Roraima é dominado pelo PCC, oriundo de São Paulo.