O jornalismo, em sua essência, é um esforço contínuo para decifrar o presente. Em tempos de turbulência, quando as bússolas parecem descalibradas e o mapa da realidade se mostra rasgado, a busca por vozes lúcidas e analíticas torna-se não apenas um dever, mas uma necessidade cívica. Foi com esse espírito que, nos estúdios do programa Nossa República — um espaço multiplataforma que transita entre a TV Pantanal, o YouTube e nosso portal —, tive o privilégio de conversar com a professora e doutora Christyane Fonseca.
Quem assiste a entrevista em vídeo percebe que sua imagem na tela traz a serenidade de quem domina o que fala, mas seus olhos revelam a inquietação de quem compreende a gravidade do momento que atravessamos. Socióloga e cientista política com uma trajetória acadêmica sólida, construída entre a Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), e hoje professora no prestigioso Instituto Federal de Mato Grosso (IFMT), Christyane não é apenas uma acadêmica. Ela é uma das raras e corajosas vozes femininas que se propõem a analisar a política em um ambiente historicamente dominado por homens, especialmente em Mato Grosso.
Nossa conversa, inicialmente pautada por temas espinhosos como a "PEC da Bandidagem" (que no dia da gravação ainda não havia sido sepultada pelo Senado, num momento de sagacidade política) e a proposta de anistia para golpistas, rapidamente se aprofundou. Transformou-se em um mergulho nas águas turvas do comportamento social, da polarização, da instrumentalização da fé e da memória histórica de um Brasil que parece, por vezes, flertar perigosamente com seus próprios fantasmas. O que se segue é o registro dessa conversa, não em seu formato de perguntas e respostas, mas como uma reportagem que busca organizar seu pensamento e oferecer ao leitor um “fio de Ariadne” para navegar no labirinto da nossa contemporaneidade.
A gênese de uma analista: ocupando espaços
Para entender o pensamento de Christyane Fonseca, é preciso primeiro entender sua trajetória. A política não surgiu em sua vida como um tema de interesse acadêmico distante, mas como uma vivência pulsante, que moldou seu caráter e direcionou suas escolhas. "Tudo começou na graduação, que, na verdade, foi uma escolha pautada pela minha formação no ensino médio, bastante politizada", relembra. "Fui aluna da antiga Escola Técnica Federal, uma instituição de referência não só na educação, mas nesse processo de formação integral."
Naquele ambiente, ainda jovem, ela deu os primeiros passos na militância, iniciando sua jornada no movimento estudantil. A transição para a universidade foi natural, mas com um propósito claro: transcender o ativismo. "Fui para a UFMT pensando justamente em fazer um curso no qual eu pudesse dialogar social e politicamente, mas não apenas na condição de ativista, e sim como uma acadêmica", explica. "Alguém que pudesse analisar isso de maneira teórica, porque acredito que é assim que legitimamos as pautas que discutimos."
Essa busca pela legitimação através do conhecimento a levou ao mestrado e, posteriormente, ao doutorado em Sociologia. Com o ferramental teórico em mãos, a percepção de uma lacuna no debate público tornou-se mais nítida. A análise política, especialmente a televisionada e a de grande alcance, era — e ainda é — um clube majoritariamente masculino. "Entendi que esse espaço da discussão política precisa ser ocupado também por mulheres", afirma com convicção.
Ela cita o exemplo da deputada estadual Janaína Riva, que ocupa um espaço institucional, mas ressalta a necessidade de ir além. "Nós precisamos de mais mulheres dialogando e discutindo política. O próprio espaço onde a Janaína está, com 24 deputados, tem apenas uma deputada eleita", pontua, lembrando que mesmo com as suplentes assumindo, a representatividade eleita diretamente é mínima. "Quando olhamos para quem atua como analista político aqui, a ampla maioria também é de homens."
Sua missão, como ela mesma define, não é trazer um "olhar de mulher" como um clichê, mas sim uma perspectiva diferente, alicerçada na academia e despida dos vícios de um debate frequentemente autorreferente. "Não é só o homem que entende de política. Nós também entendemos e temos pautas que precisam ser enfrentadas. Entendi que precisava entrar nesse espaço para formar opiniões e dialogar com outras, para que possamos construir o protagonismo de mais mulheres." É a partir desse lugar de fala — de mulher, cientista e cidadã inquieta — que ela disseca o Brasil.
Anatomia da polarização e a ascensão do "mito de barro"
Como jornalista que testemunhou os últimos suspiros da ditadura militar e a efervescência da redemocratização, confesso que um dos fenômenos que mais me assusta é a amnésia histórica que parece acometer uma parcela significativa da juventude. Vê-los abraçar com fervor discursos de ódio, flertar com ideologias totalitárias e atacar pilares civilizatórios como os direitos humanos é desconcertante. O que leva um jovem a se apaixonar por um "mito de barro", por uma figura visivelmente desprovida de conteúdo e preparo?
A análise de Christyane Fonseca para essa questão é multifacetada e foge das respostas simples. Para ela, o estopim da polarização recente pode ser localizado na tensa eleição de 2014, entre Dilma Rousseff e Aécio Neves. "O Aécio não aceitou o resultado eleitoral, e o país ali se dividiu. Num segundo momento, percebemos uma nova polarização na qual temos, de um lado, o campo progressista e, de outro, um quadro de extrema direita." A direita tradicional, que Aécio representava, foi engolida por algo novo e mais virulento.
É nesse vácuo que Jair Bolsonaro se projeta. "Ele se lança como esse mito. Ele tira do guarda-roupa — é incrível ter que falar isso — o discurso de ódio, de misoginia, de homofobia", descreve ela. Eram sentimentos que, sob o verniz do "politicamente correto" que cobrávamos, permaneciam latentes, represados. Bolsonaro não apenas deu voz a esses sentimentos; ele os legitimou a partir da mais alta tribuna da nação.
Sua ascensão, contudo, não pode ser dissociada de outro fenômeno: o "lavajatismo". "A Lava Jato conseguiu desconstruir a narrativa do campo progressista perante a sociedade, e aí se cria a figura de um herói. O Brasil é um país que precisa de heróis", diagnostica Christyane. A operação, com seus méritos e controversos deméritos, pavimentou o caminho para um "salvador da pátria" que se apresentava como a antítese de um sistema supostamente corrupto.
Esse "salvador", por sua vez, gerou descendência política. "O bolsonarismo vai, então, criando outros bolsonaristas. Surge a figura de Nikolas Ferreira, um parlamentar jovem, e uma legião de 'projetos de Bolsonaro' com uma identidade mais jovem. Esse grupo começou a dialogar com a juventude, que se sentiu representada", aponta. Do outro lado do espectro, ela identifica uma carência. "O campo progressista, o que para mim ainda é triste, tem como figura central o Lula. Quando pensamos em 2026, não conseguimos pensar em outro nome com a mesma capilaridade."
O personalismo, para ela, é a chave para entender o fenômeno. "O Brasil é um país personalista. Não votamos em projetos, votamos em pessoas." E a persona bolsonarista foi construída sob medida para um país profundamente conservador, onde a religião desempenha um papel central. "É como eu falo, Mauro: no meu bairro pode não ter creche, não ter UPA, mas tem uma igreja na esquina. E as igrejas, principalmente as neopentecostais, fazem um grande discurso de conservadorismo." A combinação de um herói anti-sistema, a liberação de discursos de ódio e a bênção de setores religiosos criou a tempestade perfeita que ainda hoje sentimos.
A metamorfose da direita e a inversão de valores
A conversa inevitavelmente nos levou a uma reflexão sobre a própria natureza da direita brasileira. Houve um tempo, não muito distante, em que o principal antagonismo político se dava entre o PT e um PSDB de figuras como Fernando Henrique Cardoso, Mário Covas e, aqui em Mato Grosso, Dante de Oliveira. Eram adversários, por vezes duros, mas que compartilhavam um campo comum de defesa da democracia e de valores progressistas no campo dos costumes. "Aquele PSDB era progressista", concordo, ao que Christyane arremata: "Perdeu a identidade".
A eleição mais acirrada daquela era, entre Lula e José Serra, teve como ápice da agressividade uma bolinha de papel atirada contra o tucano. "E já foi um escândalo", lembra ela. "Hoje, vemos uma deputada federal saindo armada na rua para atacar uma pessoa. Em que mundo estamos?" A truculência virou método, e o debate civilizado, sinal de fraqueza.
Para a socióloga, a diferença fundamental reside no fato de que o bolsonarismo transcendeu a própria direita. "O Bolsonaro não representa mais a direita ou a extrema direita. Ele criou o 'bolsonarismo', que é um estilo diferente de governar — ou de não governar", define. É um movimento que se alimenta do caos, que despreza a liturgia dos cargos e que redefine conceitos a seu bel-prazer. "Quando Eduardo Bolsonaro fala de liberdade de expressão, eu me lembro do pai dele dizendo na campanha: 'Vamos fuzilar a petralhada'. É esse tipo de liberdade de expressão que queremos?"
Essa distorção de valores atinge seu ponto mais crítico quando se apropria do sagrado. A instrumentalização da fé cristã por um movimento que prega o exato oposto dos ensinamentos de Cristo é um dos paradoxos mais dolorosos do nosso tempo. "Eu falo, Mauro, que se Jesus viesse hoje, no século XXI, ele seria crucificado novamente", diz Christyane, numa das passagens mais fortes de nossa conversa. "Porque, quando ele viveu, andava justamente com os oprimidos, os pobres, os marginalizados."
Ela traça um paralelo contundente. "E quem são nossos oprimidos hoje? São as mulheres — nosso estado é o primeiro em feminicídio. Ele andaria com mulheres, com a população LGBTQIA+, negros e negras, imigrantes. E, provavelmente, esses que se dizem cristãos, que para mim seriam os vendilhões do templo do século XXI, crucificariam Jesus novamente."
A imagem é poderosa. Vemos cristãos defendendo o armamento, a pena de morte, o ódio ao diferente, enquanto a mensagem central do Evangelho é o amor ao próximo e a caridade. "O campo progressista, que em tese dialoga mais com a perspectiva de Jesus, viu Jesus ser aparelhado pela direita", lamenta. A fé, que deveria ser um refúgio de humanidade, foi transformada em arma política, e seus símbolos, em estandartes de uma guerra cultural que envenena a alma da nação.
No campo minado da lei: impunidade e anistia
Foi nesse cenário de fraturas expostas que mergulhamos nos temas que motivaram a entrevista. A chamada "PEC da Blindagem" — ou "PEC da Bandidagem", como o apelido popular a batizou com precisão — e a articulação por uma anistia aos envolvidos nos atos golpistas de 8 de janeiro são, na visão de Christyane Fonseca, sintomas agudos dessa doença política.
"É jocoso, é um escárnio o que o Congresso pautou", diz ela, abandonando a sutileza acadêmica. A proposta, que na prática cria uma casta de cidadãos acima da lei ao dificultar investigações e prisões de parlamentares, é, para ela, fruto de um "compadrio" espúrio. "O Centrão quer a PEC da Bandidagem, e a extrema direita quer a anistia. É uma troca de favores."
A ânsia do Centrão pela imunidade, segundo sua análise, está diretamente ligada à fiscalização sobre as "emendas PIX", um mecanismo que se tornou foco de suspeitas de corrupção. "O objetivo é enterrar investigações", afirma, lembrando que deputados de Mato Grosso que votaram a favor da proposta são, eles mesmos, alvo de inquéritos. A ironia é que a prerrogativa de foro, quando inscrita na Constituição de 88, tinha um propósito nobre: proteger o mandato parlamentar de perseguições políticas no frágil contexto da redemocratização. "Ali falávamos de imunidade, não de impunidade", diferencia.
Ela recorda o caso emblemático de Hildebrando Pascoal, o "deputado da motosserra", cujo processo de investigação foi barrado pelo Congresso por anos, expondo a distorção do mecanismo. A PEC atual, para ela, é um retrocesso a essa era sombria. "Com a PEC, ele pode matar, roubar, estuprar. A Justiça terá que perguntar: 'Podemos investigar, Vossa Excelência?'. É a criação de uma casta privilegiada."
Quanto à anistia, o argumento é igualmente contundente. "As pessoas dizem: 'mas não teve golpe'. Se tivesse tido golpe, não estaríamos aqui conversando", retruca. "Houve uma tentativa de golpe, sim." Ela aponta que nem mesmo os advogados dos réus no Supremo Tribunal Federal negaram a tentativa; apenas tentaram isentar seus clientes da participação. A confissão posterior do presidente do PL, Valdemar da Costa Neto, apenas selou o que já era evidente.
Nesse contexto, ela critica duramente o voto do ministro Luiz Fux, que optou por condenar apenas duas figuras menores no julgamento de parte da cúpula do governo Bolsonaro. "É rir da nossa cara. Foi uma defesa explícita do bolsonarismo", avalia, contrastando com a firmeza que, no geral, a Corte tem demonstrado.
Democracia: frágil ou resiliente?
Ao final da nossa conversa, uma divergência cordial, mas sintomática, emergiu. Christyane expressou sua visão de que nossa democracia é "muito frágil", citando os dois impeachments e a recente tentativa de golpe como provas. Contrapus que, ao contrário, a capacidade de nossas instituições de resistir a quatro anos de um governo declaradamente anti-sistema como o de Bolsonaro, culminando na preservação do processo eleitoral, seria um sinal de maturidade e solidez.
A verdade, como costuma acontecer em debates complexos, talvez resida em ambos os pontos. A democracia brasileira é, paradoxalmente, frágil e resiliente. Frágil em sua cultura cívica, na facilidade com que o populismo a captura e na persistência de uma desigualdade que corrói a confiança no sistema. Resiliente em seu desenho institucional, na força de um Judiciário que atuou como contrapeso e na imprensa livre que, apesar dos ataques, não se calou.
A análise de Christiane Fonseca não oferece respostas fáceis nem profecias otimistas. Ela nos entrega algo mais valioso: um diagnóstico preciso, um conjunto de ferramentas críticas para que possamos, nós mesmos, compreender o caos. Sua voz, serena e incisiva, funciona como uma bússola em meio à tempestade, apontando não necessariamente para um porto seguro, mas para a direção em que a lucidez e a defesa intransigente dos valores civilizatórios devem nos guiar. Sair de uma conversa como essa é sair mais preocupado, sim, mas infinitamente mais consciente. E, em tempos como os nossos, a consciência é o primeiro e mais indispensável ato de resistência.
Assista à entrevista na íntegra:
Claudio João Bernardi 30/09/2025
A Christyane consciente do atual momento político do Brasil é sempre com suas reflexões esclarecedora
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