Diplomacia, costuma-se dizer, é a arte de dançar na ponta dos pés sobre um campo minado. É o sussurro polido que evita o grito da artilharia. Para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, essa pista de dança nunca esteve tão escorregadia. De um lado, o aceno idealista à sua base e à história da esquerda latino-americana; do outro, o pragmatismo gélido de uma reunião iminente e indigesta com Donald Trump, um encontro que pode definir o tom da economia e da soberania brasileira nos próximos anos. No meio do salão, como uma sombra incômoda, está a Venezuela.
No último sábado, 18, em um evento com estudantes em São Bernardo do Campo, berço de sua trajetória política, Lula não falava apenas para jovens sonhadores. Ao defender uma "doutrina latino-americana" e uma universidade continental para que "nunca mais um presidente de outro país ouse falar grosso com o país", Lula telegrafava uma mensagem com endereço e destinatário bem definidos: a Casa Branca. Não se engane, leitor. A fala não era um devaneio acadêmico. Era um ato político, uma demarcação de território ideológica, proferida no exato momento em que os Estados Unidos, sob o comando de Trump, intensificam suas ações militares na Venezuela sob o pretexto, já puído e pouco convincente, de combate ao narcotráfico.
A análise fria dos fatos revela a complexidade do tabuleiro. O "Texto Guia" é claro: a CIA recebeu carta branca de Trump para operações secretas, embarcações foram atacadas, vidas foram perdidas – inclusive de pescadores de Trinidad e Tobago, um "dano colateral" que incendeia ainda mais o Caribe. O governo de Nicolás Maduro acusa, sem rodeios, uma tentativa de "mudança de regime", enquanto a CUT, braço sindical historicamente atrelado ao PT, aprova uma moção de repúdio, classificando a ofensiva americana como uma "ameaça à paz de toda a América Latina".
Nesse cenário, o discurso de Lula é perfeitamente coerente com sua persona política. É o Lula do "Sul Global", o líder que busca uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, o estadista que preza pela não-intervenção e pela autodeterminação dos povos. Para sua militância e para os observadores da diplomacia "ativa e altiva" de seus mandatos anteriores, qualquer outra postura seria uma traição. Silenciar diante da demonstração de força de Washington no quintal do Brasil seria o mesmo que entregar as chaves de casa ao vizinho brigão. Seria, em suma, permitir que falassem "grosso" não apenas com a Venezuela, mas, por tabela, com toda a região que o Brasil aspira liderar.
A internet, claro, entrou em ebulição instantânea. As bolhas se digladiaram. À esquerda, aplausos e hashtags celebrando a coragem e a soberania. "Finalmente um presidente que não bate continência para a bandeira americana!", bradavam os perfis progressistas. À direita, uma avalanche de críticas. "Lula defende a ditadura de Maduro e coloca em risco nossas relações com nosso maior parceiro comercial!", esbravejavam os opositores, acusando o presidente de um antiamericanismo anacrônico e prejudicial aos interesses nacionais. O mercado financeiro, sempre com os nervos à flor da pele, piscou em amarelo, temendo que a retórica inflamada azedasse o humor dos investidores e, principalmente, do homem que Lula precisa encontrar em breve.
E aqui, caro leitor, a trama se complica e a análise didática se faz necessária. O xadrez de Lula não é jogado apenas no tabuleiro da solidariedade latino-americana. Há uma outra partida, simultânea e muito mais traiçoeira, sendo disputada na arena do pragmatismo econômico e institucional. A hipotética, porém plausível, reunião com Donald Trump não é um café entre amigos. É uma negociação de alto risco com a faca no pescoço.
Na pauta, dois temas venenosos. O primeiro é o tarifaço. Aço, alumínio, produtos agrícolas – a caneta de Trump, conhecida por seu protecionismo feroz, pode sangrar a balança comercial brasileira em bilhões de dólares. Lula precisa ir a Washington não como o paladino da América Latina, mas como o defensor de empregos e da indústria nacional. Precisa de argumentos, de poder de barganha e, crucialmente, de um mínimo de boa vontade do outro lado da mesa.
O segundo tema é ainda mais explosivo: as sanções impostas contra autoridades brasileiras, como o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, pela condenação que tornou o ex-presidente Jair Bolsonaro, um notório aliado de Trump, um presidiário. Uma ação dessa natureza é uma afronta direta e sem precedentes à soberania do Judiciário brasileiro. Seria o "falar grosso" em sua manifestação mais explícita e humilhante. É a materialização do pesadelo que o próprio Lula descreveu em seu discurso.
Percebe a sinuca de bico? Como Lula pode, em uma semana, condenar veementemente a política externa de Trump na Venezuela e, na semana seguinte, sentar-se à sua frente para pedir o alívio de tarifas e protestar contra uma sanção que é, em essência, o mesmo tipo de intervenção que ele critica? Como pedir para o vizinho baixar o som da festa dele, enquanto você o acusa publicamente de ser um vândalo no quintal ao lado? Ainda mais considerando a exacerbada e notória vaidade de Trump.
A posição da ampla maioria da sociedade brasileira, que o bom jornalismo deve buscar refletir, é um misto de orgulho e apreensão. O brasileiro médio não gosta de ver seu país tratado como um ator secundário. A ideia de soberania, de não ter que baixar a cabeça para ninguém, ressoa profundamente no orgulho nacional. Nesse ponto, o discurso de Lula encontra eco. Por outro lado, esse mesmo brasileiro é pragmático. Ele sabe que as brigas dos "grandes" afetam diretamente seu bolso, o preço do supermercado, a vaga de emprego na fábrica. Ele quer um presidente que defenda o Brasil, mas que também saiba negociar para garantir a prosperidade.
O desafio de Lula, portanto, é monumental. Ele precisa modular o tom. A defesa da soberania latino-americana é justa e necessária, mas a forma como ela é comunicada pode se transformar em munição para seus detratores e, pior, para o próprio Trump. A arte será transformar a crítica em uma posição de força, não em um obstáculo. Talvez o argumento seja: "Presidente Trump, o respeito à soberania que pedimos para a Venezuela é o mesmo que exigimos para nosso sistema judiciário e para nossas relações comerciais. Um continente estável e autônomo, sem intervenções externas, é um parceiro mais confiável e próspero para os próprios Estados Unidos".
É uma aposta alta. Um passo em falso e Lula pode ser visto como um líder fraco que cedeu à pressão, irritando sua base. Outro passo em falso na direção oposta e ele pode ser o idealista que sacrificou a economia do país no altar da ideologia, dando a seus oponentes a narrativa perfeita.
Ao final, a situação expõe a eterna gangorra da diplomacia brasileira: o pêndulo entre ser uma potência com voz própria e a necessidade de se relacionar com o poder hegemônico do continente. O discurso de Lula em São Bernardo não foi um simples aceno ao passado. Foi o prólogo de um drama cujo clímax acontecerá em breve. A questão não é se Lula vai falar grosso ou fino. É se ele conseguirá, em meio ao barulho ensurdecedor dos canhões e das calculadoras, fazer com que a voz do Brasil seja, acima de tudo, ouvida e respeitada.