A noite de quinta-feira, 28 de setembro, no icônico Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, prometia ser mais uma cerimônia de abertura para um evento setorial. No entanto, a presença do embaixador Roberto Carvalho de Azevêdo, ex-diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), como palestrante principal do IV Seminário Nacional e II Internacional dos Portos Brasileiros, elevou a ocasião a um patamar de profunda reflexão geopolítica. Como responsável pela cobertura de conteúdo para a empresa organizadora, minha expectativa era a de ouvir uma análise técnica sobre fluxos comerciais. O que presenciei, contudo, foi uma aula magna sobre as forças tectônicas que estão remodelando nosso mundo.
Azevêdo subiu ao palco com a autoridade de quem esteve no epicentro das negociações globais por décadas. Sua conexão com a plateia, majoritariamente composta por operadores e executivos do setor portuário, foi imediata e precisa. "Sabe quando eu tava na OMC", iniciou ele, "nós fazíamos índices de estimativa de crescimento do comércio global, e um parâmetro central na elaboração de qualquer índice nosso era a atividade portuária. A atividade portuária era o termômetro, dizia se o comércio tava crescendo, tava diminuindo, antes dos números aparecerem. Eles apareciam no Porto".
Estabelecida a relevância do tema para aquele público, ele mergulhou no cerne de sua análise, propondo-se a responder três perguntas fundamentais que, segundo ele, são cruciais para entender nosso tempo. Estruturei este artigo para seguir a lógica impecável de seu raciocínio, relatando as teses e as informações que ele compartilhou, buscando manter a objetividade e a clareza de um observador que teve o privilégio de ouvir uma das mentes mais lúcidas da diplomacia brasileira decifrar o caos contemporâneo. As perguntas que guiaram sua fala, e que agora guiam meu texto, foram: Por que o mundo mudou? O que, de fato, mudou? E, finalmente, o que fazer diante deste novo cenário?
Parte 1 - As origens da ruptura: por que o mundo mudou?
Para Azevêdo, compreender as causas das atuais turbulências é essencial para avaliar a "natureza, a direção, a amplitude, a profundidade e a longevidade" das mudanças. Ele antecipou uma conclusão que perpassaria toda a sua fala: "são mudanças estruturais". Fenômenos políticos como a ascensão de líderes populistas não são, em sua visão, "um acidente de percurso", mas sim "uma consequência natural das mudanças estruturais que nós estamos observando e observamos nas últimas décadas no mundo". O embaixador concentrou sua explicação em dois fenômenos primordiais.
O primeiro, e talvez o mais disruptivo, é a Revolução Digital. Azevêdo argumentou que seu impacto vai muito além da tecnologia; ela provocou uma "desestruturação e impacto muito forte nos mercados de trabalho". Ele pintou um quadro vívido da situação, especialmente nos países desenvolvidos: uma vasta população, formada na economia tradicional, que se vê à margem dos novos setores dinâmicos da economia digital. "Eles não conseguem atuar", afirmou, taxativo. "Por quê? Porque eles não têm educação, eles não têm as capacidades". A transição para esse novo mundo, segundo ele, exigiria um esforço de "longa preparação, de longa transição, educação, reeducação", um processo que poderia levar "uma década ou mais". O problema, apontou, é a incompatibilidade desse horizonte temporal com a urgência dos ciclos políticos. "Pensar em dez anos para políticas públicas não é a prioridade de quem tá pensando nas eleições daqui a dois anos".
A consequência direta desse descompasso foi o "achatamento da classe média", particularmente visível nos Estados Unidos. Esse processo gerou um profundo "sentimento de desesperança, de abandono". Frases como "não tenho futuro", "meu salário não cresce" e "meus filhos não têm uma perspectiva melhor do que a minha" tornaram-se o pano de fundo de uma ampla "contestação do status quo". A resposta a essa insatisfação popular, segundo a análise de Azevêdo, é quase um manual de política moderna: encontrar um inimigo externo. "O problema não sou eu, o problema são as importações que tão vindo de um país que tá subsidiando, que tá jogando de maneira desleal... E ainda por cima tem o imigrante".
Essa narrativa, que culpa as importações e os imigrantes pelo desemprego doméstico, alimenta diretamente dois movimentos políticos: "o nacionalismo e o populismo". E, como Azevêdo fez questão de frisar, "o nacionalismo e o populismo estão elegendo líderes mundo afora". O Brexit, a ascensão de movimentos nacionalistas na Europa e a própria eleição de Donald Trump nos EUA são, para ele, manifestações claras desse mesmo fenômeno estrutural. Tudo isso, alertou, é "exponencializado pela mídia social", outro produto da digitalização, que gera polarização e dá origem a um "populismo raiz", um populismo que "não precisa mais do partido". O líder, agora, pode se eleger diretamente pelas redes sociais, invertendo a lógica de poder: "o partido depende mais do líder do que o líder depende do partido".
O segundo grande fator de transformação mundial é a Reorientação das Tensões Geopolíticas. A Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética deu lugar a uma nova bipolaridade: Estados Unidos versus China. Azevêdo foi enfático ao diferenciar as duas eras. "Por que que é muito diferente? Porque a União Soviética nunca foi uma ameaça econômica aos Estados Unidos, nem ao modelo ocidental. Nunca. A China é". A ameaça chinesa, segundo ele, manifesta-se em três frentes: é um desafio econômico, um desafio tecnológico e, mais fundamentalmente, um "desafio do ponto de vista de modelo político-econômico", um sistema híbrido que transcende a dicotomia clássica entre capitalismo e comunismo. Essa percepção, explicou, criou nos Estados Unidos um "sentimento suprapartidário", compartilhado por democratas e republicanos, de que "a hegemonia americana está ameaçada. E ela está ameaçada pela China".
Paralelamente a essa tensão principal, Azevêdo destacou um segundo eixo geopolítico: "a emergência dos emergentes". Países como China, Índia, Coreia do Sul, Brasil e México ganharam uma capacidade de influência na economia mundial que antes era impensável. Ele usou sua própria experiência para ilustrar essa mudança. Antigamente, nas negociações comerciais, as decisões eram tomadas por um grupo de quatro — o "Quadri", composto por Estados Unidos, União Europeia, Japão e Canadá. Eles decidiam e depois comunicavam aos demais. Com a ascensão dos emergentes, especialmente após a entrada da China na OMC em 2001, essa dinâmica ruiu. O "Quadri" foi substituído pelo "G5", que incluía Brasil, Índia e China.
Paradoxalmente, segundo Azevêdo, esses países emergentes foram "fundamentais, por incrível que pareça, no colapso do sistema multilateral". A razão é simples: "o sistema multilateral não foi feito pra eles". As regras, desenhadas pelos países desenvolvidos, concediam isenções aos emergentes. Quando estes se tornaram potências econômicas, os países desenvolvidos passaram a exigir que eles "contribuíssem", que "pagassem", em vez de apenas receberem ajuda. Os emergentes, confortáveis com o status quo, naturalmente resistiram. Como as decisões na OMC exigem consenso, o sistema travou. Essa paralisia levou à criação de blocos alternativos, como os BRICS, e, em última análise, "implodiram o sistema multilateral de comércio".
A conclusão de Azevêdo para esta primeira parte foi um alerta direto e sem rodeios: "O mundo não é mais o mundo de antes. E a notícia que eu trago pra vocês é que ele não voltará a ser o que ele era antes. Ele vai ter que ser reinventado. E essa reinvenção não acontecerá de forma natural e espontânea. Quase sempre vem depois de grandes rupturas, de grandes coisas dramáticas".
Parte 2 - Os sintomas da transformação: o que mudou?
Tendo diagnosticado as causas, Azevêdo passou a descrever as consequências, os sintomas visíveis dessa nova ordem mundial, tanto no plano nacional quanto no internacional.
No plano nacional, ele destacou duas mudanças evidentes. A primeira é a polarização política extrema. "Você vê extremos, né, ou dois polos... E o centro vai perdendo a viabilidade política, porque os polos é que vão ganhando essa força". Ele apontou para um curioso paradoxo: embora o centro perca relevância no discurso, "na maior parte das economias que a gente tá vendo, quem elege é o centro", pois seu movimento pendular acaba decidindo a vitória de um dos polos. A segunda mudança é a aceleração dos ciclos políticos. As guinadas "de um lado pro outro com muita velocidade" geram uma instabilidade crônica, criando uma "dificuldade, por exemplo, de planejamento a longo prazo, planejamento estratégico". A pergunta que paira sobre investidores e governos é: "Como é que eu vou planejar estrategicamente se daqui a dois, três anos pode mudar tudo?".
No plano internacional, as mudanças são ainda mais profundas e impactantes. A primeira, já mencionada, é a crise do sistema multilateral. Instituições como o Conselho de Segurança da ONU e a própria OMC estão, em suas palavras, paralisadas ou disfuncionais. O sistema do pós-guerra "não interessa mais ao hegemônico".
Na ausência de um sistema multilateral funcional, emerge a segunda grande mudança: a militarização do poder econômico. Azevêdo explicou que o país hegemônico, os Estados Unidos, passou a usar sua força econômica como uma arma de imposição. Ele detalhou duas formas principais. A primeira é o poder de compra. Os números que ele apresentou são avassaladores: os EUA importam anualmente "quatro trilhões e cem bilhões de dólares" em bens e serviços. "Só tem duas economias maiores que isso no mundo", enfatizou, referindo-se a China e Alemanha. Esse volume confere aos EUA "o poder de usar o seu mercado interno como basicamente uma arma de imposição".
A segunda forma é o controle sobre as plataformas globais. Azevêdo argumentou que a globalização ocorreu "muito em cima da infraestrutura do hegemônico". Ele listou exemplos concretos: a internet, cujos servidores e controle estão majoritariamente nos EUA; o sistema financeiro, dependente do sistema de compensação Swift e da infraestrutura americana; e, crucialmente, "o cérebro da digitalização", os chips, cujo design e software são predominantemente americanos. "Esse poder de ter uma alavancagem global nessas plataformas é inacreditável, extraordinariamente elevado", afirmou.
Essa nova realidade consolidou uma mudança de mentalidade global, passando "de uma mentalidade de cooperação para uma mentalidade de imposição". As alianças estratégicas perdem espaço, pois "o teu amigo hoje é o teu inimigo amanhã". A velha máxima dos negócios foi atualizada por Azevêdo para a geopolítica atual: "Amigos, amigos, negócios à parte? Hoje, é amigo talvez, negócios à parte". Nesse novo jogo, a alavancagem negociadora de um país não vem mais de alianças, mas sim da "sua capacidade de gerar interesses no outro lado", seja "oferecendo vantagem ou impondo dependências", como a China faz com seu domínio sobre terras raras e componentes de energia renovável.
Parte 3 - Navegando na incerteza: o que fazer?
Diante de um cenário tão complexo e disruptivo, a pergunta final e mais pragmática era inevitável. Azevêdo dedicou a última parte de sua fala a traçar um roteiro de sobrevivência e adaptação para empresas e países.
A primeira diretriz é que os operadores econômicos "têm que estar preparados para mudanças muito rápidas e inesperadas das regras do jogo". Ele introduziu um conceito impactante: a quarta geração de barreiras comerciais. Se a primeira geração eram as tarifas e cotas, a segunda as barreiras sanitárias e fitossanitárias, e a terceira as questões climáticas, trabalhistas e de direitos humanos, a quarta geração é simplesmente a do "porque eu quero". É a imposição de barreiras de forma unilateral, sem necessidade de justificativas multilaterais. "Não tenho que explicar nada a ninguém. Eu quero, simplesmente", resumiu Azevêdo.
Isso exige uma mudança fundamental na lógica das cadeias de suprimentos, migrando do modelo "just-in-time" para o "just-in-case". "E se acontecer aquilo?", é a pergunta que deve guiar as estratégias. A resposta é a diversificação: "diversificar suas fontes de suprimento, você tem que diversificar os mercados de destino". Ele citou a necessidade urgente de o Brasil avançar em acordos comerciais e diversificar sua rede de logística. Para ilustrar o risco, compartilhou uma experiência pessoal de quando era vice-presidente da PepsiCo: uma carga da empresa foi impedida de aportar num país porque o navio, em sua rota, havia passado por um país sancionado. "Tudo isso faz parte desse novo mundo", alertou.
A segunda necessidade é uma visão estratégica que pense à frente. Não basta reagir ao primeiro movimento; é preciso antecipar "o segundo movimento, o terceiro movimento, o quarto movimento". Ele lembrou a celebração inicial no Brasil quando os EUA impuseram tarifas à China, pensando que o Brasil se beneficiaria. Seu alerta na época, e que se provou correto, foi: "Devagar com o andor", pois as negociações subsequentes poderiam levar a compromissos de compra que excluiriam o Brasil.
A terceira adaptação é o fortalecimento da diplomacia empresarial. Azevêdo defendeu que "as empresas e os setores econômicos brasileiros precisam estar presentes no mercado dos consumidores", pois os canais diplomáticos tradicionais "podem ser comprometidos a qualquer momento". A dificuldade atual do setor privado brasileiro em dialogar com os Estados Unidos é, para ele, um exemplo da falta dessa estratégia. "Agora tá correndo atrás", observou.
Finalmente, sua recomendação mais contundente para o Brasil: multinacionalizar. "O Brasil, desde os anos setenta, vive olhando pro mercado interno. Esse modelo tem que acabar", declarou. Ele foi enfático ao dizer que o "custo Brasil não pode ser uma desculpa para a não multinacionalização do país". A competitividade, segundo ele, nasce no mercado mundial. Manter o foco em um mercado interno cativo gera ineficiências que deixarão o setor produtivo brasileiro para trás. "Eu garanto pra vocês, não vai sobreviver na lei da selva".
Ao final, Azevêdo respondeu à pergunta que pairava no ar: o mundo vai desglobalizar? Sua resposta foi negativa. "O mundo não vai desglobalizar. Ele vai ficar mais complexo. E ele vai ficar mais fragmentado". O grau dessa fragmentação dependerá de duas variáveis: o nível de tensão entre EUA e China — e o risco de uma mentalidade de "nós contra eles" que forçaria países como o Brasil a escolher um lado — e o sucesso das políticas de nacionalização da produção. Sobre esta última, ele se mostrou cético.
Sua mensagem final foi um misto de realismo e esperança para a plateia. Nesse mundo mais complexo e fragmentado, mas que continuará intenso em trocas comerciais, o setor portuário, longe de perder relevância, será "absolutamente instrumental, fundamental".
Eu saí do Museu Oscar Niemeyer com a clara sensação de que a análise de Roberto Carvalho de Azevêdo não era apenas uma palestra, mas um mapa. Um mapa de um território perigoso, volátil e cheio de armadilhas, mas que, para aqueles com a estratégia e a visão correta, ainda oferece rotas para a prosperidade. Mas também com uma sensação – reconhecendo minha ignorância – de que não dá pra gente se curvar ao poder hegemônico dos EUA, que quer impor ao mundo um alinhamento ideológico e um modelo de democracia que não respeita as escolhas e a soberania dos demais países.