BLOG DO MAURO Terça-feira, 23 de Setembro de 2025, 06:00 - A | A

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AMEAÇA À DEMOCRACIA

PEC da blindagem e anistia: o Congresso contra o Estado de Direito

Mauro Camargo

Ilustração produzida por IA

PEC da BLIDAGEM

 

Enquanto o Brasil ainda processa as cicatrizes do 8 de janeiro e testemunha o desfecho de julgamentos históricos que colocam, pela primeira vez, a responsabilização por atos antidemocráticos no centro do debate republicano, uma ofensiva legislativa avança no Congresso Nacional em sentido diametralmente oposto. Sob o pretexto de defender prerrogativas, a chamada "PEC da Blindagem" e as articulações por anistia aos envolvidos na tentativa de golpe de Estado formam uma tenaz que ameaça sufocar a própria noção de igualdade perante a lei, construindo um perigoso castelo de impunidade.

A Proposta de Emenda à Constituição, apelidada de "PEC da Bandidagem" por seus críticos, pretende condicionar a abertura de qualquer ação penal contra deputados e senadores a uma autorização prévia da respectiva Casa Legislativa. Na prática, o destino de um inquérito ou denúncia criminal não dependeria mais da análise técnica do Judiciário e do Ministério Público, mas do cálculo político e do corporativismo dos colegas do investigado. É a institucionalização de uma barreira que visa proteger não o mandato, mas o indivíduo, confundindo deliberadamente a imunidade parlamentar, restrita a opiniões, palavras e votos, com uma licença para delinquir.

Os argumentos em defesa da proposta, embora veementes, não resistem a uma análise factual e republicana. Eles se desdobram em falácias que merecem ser combatidas com o rigor que a defesa da democracia exige.

O deputado federal José Medeiros (PL), por exemplo, alega que a medida visa "proteger essa casa de anomalias", citando uma suposta parcialidade do Procurador-Geral da República que atuaria como "líder do PT". O argumento é uma cortina de fumaça. Ao invocar uma teoria da perseguição política, o parlamentar desvia o foco do ponto central: a proposta submete a aplicação da lei penal a um escrutínio político. Ela não protege o Legislativo de "anomalias", mas o contamina com uma anomalia ainda maior, transformando o plenário em um tribunal de exceção onde os réus são julgados por seus pares, cujos votos podem ser influenciados por alianças, trocas de favores ou pressões partidárias. A solução para uma eventual atuação indevida de um membro do Judiciário ou do Ministério Público está nos mecanismos de controle e correição do próprio sistema de Justiça, e não na criação de um escudo para toda uma classe política.

Na mesma linha, a deputada federal Gisela Simoni (PL) tenta rebatizar a proposta como "PEC das Prerrogativas Parlamentares", afirmando que "não é uma medida para promover a blindagem". Segundo ela, o texto apenas resgataria a redação da Constituinte de 1988 e garantiria o "devido processo legal". A manobra semântica ignora o contexto e a essência da proposta. A imunidade formal prevista na Constituição de 1988 foi concebida para proteger parlamentares da perseguição de um regime autoritário recém-findado, não para isentá-los de responder por crimes comuns em uma democracia consolidada.

A alegação de que "ninguém estará acima da lei" é frontalmente contradita pelo mecanismo que ela mesma defende. A imposição de um filtro político para a ação da Justiça cria, por definição, uma categoria de cidadãos que não se submete à lei da mesma forma que os demais. O prazo de 90 dias para deliberação, apresentado como uma "melhora", é uma salvaguarda frágil, facilmente contornável por manobras regimentais em um ambiente político que se mostra perito em protelação. O alerta do ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, de que, com tal regra, "o crime organizado poderia se infiltrar no Parlamento", expõe a irresponsabilidade da proposta. Não se trata de assegurar a "ampla defesa", mas de obstruir a acusação.

Já o deputado federal Nelson Barbudo (PL) recorre ao populismo mais rasteiro, pintando a reação negativa à PEC como "choro da esquerda". Com a retórica do "nós contra eles", ele afirma que o projeto lhe daria liberdade para "defender" seus eleitores sem ser "perseguido pelo judiciário parcial". O deputado confunde, intencionalmente, liberdade de expressão com liberdade para cometer crimes. A imunidade material já garante que nenhum parlamentar seja processado por suas palavras e votos no exercício do mandato. O que o deputado chama de "pirulitinho doce da boquinha da esquerda" é, na verdade, o princípio fundamental de que a lei vale para todos. A PEC não visa proteger a "voz" do parlamentar, mas blindar suas ações, caso elas configurem crimes como corrupção, lavagem de dinheiro ou, ironicamente, atentados contra o próprio Estado de Direito que lhe garante o mandato.

Essa articulação legislativa não ocorre no vácuo. Ela é a consequência direta e o braço protetor de um movimento que culminou na invasão das sedes dos Três Poderes e que agora busca anistia. Falar em perdão para quem atacou violentamente as instituições, destruiu patrimônio público e clamou por uma intervenção militar é uma afronta à memória histórica e um incentivo para futuras sublevações. A desfaçatez de se discutir anistia para golpistas enquanto se tenta aprovar uma "PEC da Blindagem" revela uma estratégia coordenada: garantir a impunidade tanto para a base que executa a desordem quanto para os líderes que a inspiram e, eventualmente, a financiam.

A indignação não é partidária. O presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, Otto Alencar (PSD-BA), expressou o sentimento de muitos ao afirmar que "a repulsa à PEC da Blindagem está estampada nos olhos surpresos do povo". Manifestações populares, como as que ocorreram em Brasília, ecoam essa repulsa, com cidadãos como a bancária Keyla Soares, que classificou a proposta como "ofensiva" e um ato de autodefesa da classe política.

O respeito à democracia plena exige mais do que eleições periódicas. Exige eleições livres, sem a contaminação de milícias digitais, sem a indústria de narrativas mentirosas e fake news, e sem a manipulação de algoritmos por big techs e redes sociais. Exige, fundamentalmente, o respeito incondicional às instituições democráticas e à separação entre os Poderes.

O que está em jogo é a própria sobrevivência do Estado Democrático de Direito. A sociedade civil e o eleitorado devem permanecer vigilantes. A sabedoria do voto nas eleições de 2026 será crucial para assegurar um Congresso Nacional comprometido com a governabilidade e a estabilidade, capaz de preservar o País de legislações casuísticas e retrocessos civilizatórios. É preciso dar um basta à política do ódio e da autoproteção, reafirmando que, na República, não há espaço para cidadãos acima da lei.



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