Não se engane com o cheiro de incenso ou com os louvores entoados em decibéis que desafiam a lei do silêncio e o bom senso. Há algo de podre no reino dos céus — ou melhor, na sucursal terrena que alguns autoproclamados profetas decidiram erguer em solo brasileiro. O que estamos assistindo, com um misto de incredulidade e horror, não é um avivamento espiritual. É um sequestro. Um assalto à mão armada — muitas vezes literalmente — onde a fé foi feita refém de um projeto de poder que tem nome, sobrenome e um diagnóstico histórico preciso: cristofascismo.
O termo pode soar acadêmico, coisa de tese de doutorado empoeirada, mas a realidade dele morde a nossa carne todos os dias. Cunhado lá nos anos 70 pela teóloga alemã Dorothy Sölle — uma mulher que olhou nos olhos do nazismo e viu como ele se vestia com as roupas da igreja para legitimar o inominável —, o conceito nunca foi tão atual, tão palpável e tão brasileiro. Cristofascismo é o casamento profano entre o fundamentalismo religioso e a política fascista. É quando o púlpito vira palanque e a Bíblia, em vez de consolo, vira porrete.
No Brasil, essa mistura explosiva encontrou o laboratório perfeito. Somos um país forjado na cruz e na espada, onde a colonização não foi apenas uma invasão territorial, mas uma ocupação da alma. O cristianismo não desembarcou aqui pedindo licença; ele chegou chutando a porta, demonizando o que era da terra, apagando o que era da África e impondo uma moral única como se fosse a única respiração possível. Criou-se um "bom senso" que, na verdade, é um cativeiro: a ideia de que a hierarquia é sagrada, que a culpa é virtude e que a obediência cega é o caminho para o paraíso.
É nesse caldo de cultura, temperado com séculos de racismo, patriarcado e medo, que a extrema direita brasileira decidiu nadar de braçada. E não é um nado qualquer; é um nado sincronizado com o que há de mais retrógrado no mundo. O bolsonarismo, essa amálgama de ressentimentos e interesses escusos, não inventou a roda, mas a turbinou com um motor V8 de ódio religioso.
O mecanismo é de uma simplicidade diabólica. Primeiro, você cria o inimigo. Não um adversário político com quem se debate impostos ou saneamento básico, mas um inimigo espiritual. O esquerdista, o ativista dos direitos humanos, a feminista, o LGBT, o professor universitário — eles não são cidadãos com opiniões divergentes. Eles são "agentes do mal", "servos de Satanás", "destruidores da família". E contra o demônio, meu amigo, não se dialoga. Contra o demônio, se guerreia. Vale tudo. Vale mentira no WhatsApp (batizada de "liberdade de expressão"), vale ameaça, vale tiro. Afinal, é uma Guerra Santa.
Essa "teologia do domínio" transforma a política em um campo de batalha onde a democracia é um estorvo. Para o cristofascista, as instituições humanas — o STF, o Congresso, a Constituição — são irrelevantes diante da "Lei de Deus", que, convenientemente, é interpretada pelo líder ungido da vez. O "Mito" não é um gestor público sujeito a erros e cobranças; ele é um enviado, um messias de farda ou terno mal cortado, que está acima do bem e do mal, acima da lei e da ordem, porque sua missão é divina. "Deus acima de todos" deixa de ser um slogan e vira um salvo-conduto para a barbárie.
E que Deus é esse? Certamente não é o carpinteiro de Nazaré que andava com prostitutas, cobradores de impostos e marginalizados. O Deus do cristofascismo é um general de guerra. É um Deus que odeia. Um Deus que fiscaliza úteros, que se preocupa obsessivamente com o que dois adultos fazem entre quatro paredes, mas que fecha os olhos para a fome, para a miséria, para a destruição da floresta e para a tortura. É uma moralidade seletiva, hipócrita até a medula, que defende a "família tradicional" enquanto seus líderes colecionam divórcios, escândalos e rachadinhas.
A perversidade desse projeto está na sua capacidade de mobilização. Ele sequestra a esperança e o medo das pessoas comuns. O trabalhador que vê seu poder de compra derreter, a dona de casa que teme pela segurança dos filhos, o jovem sem perspectiva — todos são presas fáceis para a narrativa de que o problema do Brasil não é a desigualdade obscena ou a elite predatória, mas sim a "falta de Deus" ou a "ideologia de gênero". É uma cortina de fumaça perfeita. Enquanto o povo briga por banheiro unissex, a boiada passa, os direitos trabalhistas são triturados e a riqueza nacional é entregue de bandeja.
Mas o buraco é mais embaixo. O cristofascismo não quer apenas governar; ele quer formatar. Ele quer controlar a educação, a cultura, a arte. Quer reescrever a história para dizer que a ditadura não existiu ou foi branda. Quer transformar escolas em quartéis e professores em delatores. É o projeto da ignorância orgulhosa, que vê na ciência e no pensamento crítico ameaças à fé. E, convenhamos, uma fé que se sente ameaçada por um livro de biologia ou de história é uma fé muito frágil — ou muito mal-intencionada.
O que vemos no Brasil de hoje é a normalização do estado de exceção dentro da própria mente das pessoas. O vizinho que sempre foi cordial de repente defende a tortura. O tio do pavê agora prega o extermínio de opositores no grupo da família. A religião, que deveria ser um espaço de acolhimento e transcendência, virou um clube de tiro moral. E ai de quem não rezar pela cartilha deles. O "amor cristão" dessa turma tem a consistência de um arame farpado.
Enfrentar isso exige mais do que voto. Precisamos entender que a nossa herança cultural é muito mais rica, plural e colorida do que esse preto-e-branco cinzento que tentam nos impor. Que pastor, padre ou bispo não são donos da verdade, nem procuradores de Deus na Terra.
É preciso separar o joio do trigo, a ética do dogma, a política da fé pessoal. A laicidade do Estado não é inimiga da religião; é a garantia de que todas as religiões — e a ausência delas — possam conviver sem que uma tente engolir a outra. Defender o Estado Laico hoje é um ato de legítima defesa espiritual.
A sociedade brasileira, em sua ampla e vibrante maioria, não cabe nessa caixa apertada do fundamentalismo. Somos o país do samba, do candomblé, do catolicismo popular, do espiritismo, da umbanda, do pentecostalismo de periferia que acolhe e não oprime. Somos a terra da mistura, do sincretismo, da gambiarra criativa. Tentar enquadrar o Brasil numa teocracia neofascista é como tentar represar o Amazonas com uma peneira. Pode causar estrago, pode gerar morte e destruição, mas a força das águas — a força da nossa diversidade — uma hora rompe.
O cristofascismo aposta no medo. Medo do inferno, medo do comunismo, medo do diferente. Mas o antídoto para o medo não é a coragem cega; é a consciência. É a lucidez de enxergar que quem vende a salvação em troca da sua liberdade está, na verdade, comprando a sua alma para um projeto de poder mundano, sujo e cruel.
Não estamos falando de combater a fé das pessoas. A fé é sagrada, é refúgio, é força. Estamos falando de combater o uso da fé como arma de destruição em massa da cidadania. Estamos falando de recusar um Deus que exige sangue em vez de amor. Estamos falando de defender o óbvio: que lugar de religião é na consciência livre de cada um, e lugar de política é na praça pública, debatida com argumentos racionais, e não com versículos tirados de contexto para justificar a opressão.
O Brasil precisa se reencontrar consigo mesmo. Precisa olhar no espelho e ver que sua beleza está na sua complexidade, não na uniformidade de quartel. O projeto cristofascista é um projeto de morte — morte da cultura, morte da diferença, morte da empatia. E nós, a maioria que ainda pulsa, que ainda sonha, que ainda acredita na alegria como forma de resistência, escolhemos a vida.
Que os mercadores do templo saibam: nossa paciência pode ser grande, mas nossa memória é longa e nossa resistência é histórica. O Brasil não será uma fazenda de gado obediente, nem um templo de fanáticos. O Brasil será, a despeito deles, uma nação livre. E se Deus é brasileiro, como dizem, Ele certamente está do nosso lado — sambando, jogando capoeira e abençoando quem luta por justiça, pão e liberdade para todos, sem distinção de credo, cor ou quem se leva para a cama. Amém? Axé!






