Ela entra com a firmeza de quem conhece o terreno que pisa, mas com um olhar que não disfarça o peso das batalhas que trava. Janaína Riva, aos 36 anos, não é apenas uma deputada estadual. Ela é um fenômeno político, um paradoxo vivo. Em Mato Grosso, terra de superlativos agrícolas e de uma cultura política historicamente dominada por homens, ela se ergueu não uma, mas três vezes, como a voz mais potente nas urnas. É a mulher mais votada da história do estado, a primeira a ocupar a vice-presidência e a presidir, ainda que interinamente, a Assembleia Legislativa. Contudo, essa mesma terra que a elege com números recordes é, tragicamente, campeã em um dos índices mais cruéis: o feminicídio.
É para desvendar esse paradoxo, para compreender a jornada da mulher por trás da couraça da política, que nos sentamos hoje. “O prazer é meu, Mauro Camargo, estar aqui junto de você nesse programa que tem repercutido em todo o estado de Mato Grosso, muitas vezes até nacionalmente, pela sua capacidade e intelectualidade”, ela diz, com a polidez de quem domina a liturgia do poder, mas com uma sinceridade que busca conectar-se para além das formalidades.
A pergunta sobre o começo de tudo parece simples, mas para Janaína Riva, a resposta é um mergulho em um passado de expectativas, medos e de um destino que parecia, ao mesmo tempo, traçado e improvável.
A gênese: entre o legado e o medo
A política, para Janaína, nunca foi um território estranho. Nascida em Juara, em 27 de janeiro de 1989, ela é filha de uma das figuras políticas mais conhecidas e controversas de Mato Grosso, o ex-deputado José Geraldo Riva. Aos seis anos, a família se mudou para a capital, Cuiabá, e a vida de Janaína passou a ser ritmada pelos corredores e articulações do Poder Legislativo. Ela cresceu ouvindo os sussurros, as estratégias, as vitórias e as derrotas que moldam o destino de um estado.
“Seu pai sempre falava sobre a sua habilidade política desde que você era criança”, comento, evocando memórias de conversas antigas. Um sorriso contido aflora em seu rosto. Ela recorda a sensação de estar sempre nos bastidores, de ser uma observadora atenta, mas nunca a protagonista. “Eu ficava assustada, porque trabalhar na frente de um projeto era completamente diferente de estar nos bastidores”, confessa.
O ponto de virada, o momento em que a coadjuvante foi empurrada para o centro do palco, chegou de forma abrupta. “Quando meu pai decidiu não ser mais deputado estadual, o grupo se reuniu e mencionou que eu seria a candidata”. A frase, dita com a tranquilidade de quem já processou o evento inúmeras vezes, ainda carrega o eco do choque inicial. “Fiquei muito assustada quando ouvi isso pela primeira vez. Eu tinha apenas vinte e quatro anos e estava grávida do meu filho, José”.
A imagem é poderosa: uma jovem mulher, advogada recém-formada em 2011, carregando no ventre uma nova vida e nos ombros o peso de um legado político imenso. O medo não era apenas o da exposição ou da responsabilidade. Era um medo visceral, fincado nas incertezas de um ambiente que ela conhecia bem demais para subestimar. “Trabalhar na política me parecia algo muito difícil, e acreditar que o público investiria em uma mulher era uma questão que me preocupava”.
Sua preocupação era um reflexo acurado da realidade. Em 2014, a política mato-grossense ainda era um clube predominantemente masculino. “Naquela época, a situação era ainda pior do que hoje, embora isso ainda seja um desafio”, pondera. A hesitação era, portanto, uma forma de lucidez. Mas a semente da política, plantada na infância, estava destinada a germinar. Contra o medo, ela opôs a coragem. Contra a dúvida, a ação. E o resultado foi um marco.
Quebrando barreiras: a força dos votos
Naquele ano de 2014, Janaína Riva não apenas se elegeu pelo Partido Social Democrático (PSD), mas o fez com uma votação expressiva de 48.171 votos, tornando-se a única mulher na 18ª legislatura da Assembleia Legislativa de Mato Grosso. A solidão na bancada feminina poderia tê-la intimidado, mas serviu como catalisador. Ela se tornou, por necessidade e por vocação, a voz de todas as mulheres que não estavam ali representadas.
A desconfiança inicial do eleitorado, que tanto a preocupava, deu lugar a um reconhecimento crescente. Sua atuação, focada, combativa e surpreendentemente articulada para uma estreante, consolidou sua posição. Em 2018, já filiada ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB), a consagração veio em forma de 51.546 votos, o que a tornou a deputada mais votada do estado. O feito, por si só histórico, seria superado por ela mesma quatro anos depois.
Em 2022, Janaína Riva pulverizou o próprio recorde, alcançando a marca impressionante de 82.124 votos. Mais do que números, esses votos representam uma mudança de paradigma. O eleitorado de Mato Grosso, em sua maioria, escolheu uma mulher para ser sua principal representante no parlamento, por duas vezes consecutivas.
Essa ascensão vertiginosa se traduziu em poder institucional. Janaína quebrou barreiras de gênero que pareciam intransponíveis. Foi a primeira mulher a ocupar o cargo de vice-presidente da Mesa Diretora, uma posição estratégica que exerceu nos biênios 2019/2020, 2021/2022 e novamente em 2023/2024. Em 2019, durante 50 dias, um novo capítulo foi escrito: ela assumiu interinamente a presidência da Casa de Leis, tornando-se a primeira e única mulher a presidir o parlamento estadual.
“Na Assembleia Legislativa, apesar de estar em um ambiente que muitas vezes é machista, vi que a convivência com mulheres líderes era um diferencial”, reflete. Ela aprendeu a navegar nessas águas turbulentas, usando a diplomacia quando necessário e a firmeza quando indispensável. “Com o tempo, as mulheres passaram a se posicionar melhor e ganhar mais espaço em Mato Grosso”. Um espaço que ela não apenas ocupou, mas ajudou a alargar para outras que viriam depois.
A conexão da alma: política, maternidade e redes sociais
Mas como explicar essa conexão tão profunda com um eleitorado tão diverso? Parte da resposta, segundo ela, está na forma como escolheu se comunicar. Em uma era de polarização e discursos ensaiados, Janaína apostou na transparência radical, utilizando as redes sociais não como um mero canal de propaganda, mas como uma janela para sua vida.
“É interessante notar que criei um vínculo forte com o público por meio das redes sociais, onde as pessoas me veem como sou de verdade, tanto em casa quanto fora. Isso me ajudou a estabelecer essa conexão”. Ao mostrar-se como mãe, esposa, mulher com suas vulnerabilidades e sua força cotidiana, ela humanizou a figura da política, tradicionalmente distante e impessoal. Seus seguidores não veem apenas a deputada recordista de votos; veem a Janaína que cuida dos filhos, que se preocupa com a segurança, que enfrenta os mesmos dilemas de tantas outras mulheres.
Essa identificação se tornou a espinha dorsal de seu mandato. “Minha trajetória sempre teve um olhar voltado para as pautas de mulher e mãe. Recebo constantemente relatos de mães que têm medo pela vida de seus filhos, e isso me motiva a trabalhar em prol de questões que afetam a todos”. Essa sensibilidade, longe de ser uma fraqueza no jogo bruto da política, revelou-se sua maior força. Ela deu voz a um medo coletivo, a uma angústia materna que ecoa por todo o estado, e a transformou em pauta legislativa.
No entanto, seu trabalho transcende a agenda feminina. Com a mesma desenvoltura, ela mergulha em temas áridos como o agronegócio, buscando soluções e apoio para pequenos e médios produtores, demonstrando uma versatilidade que amplia sua base e seu respeito político. “Desde o início, eu estive atenta não só à defesa dos direitos das mulheres, mas também a pautas relacionadas ao agro, buscando sempre a inclusão social e a assessoria necessária”. É a política em sua essência: a busca por equilibrar interesses e promover o desenvolvimento para todos, sem perder de vista os mais vulneráveis.
O paradoxo de chumbo: poder feminino em terra de violência
E é aqui que a conversa retorna ao seu ponto mais agudo e doloroso. A mesma Janaína que coleciona recordes e quebra barreiras é parlamentar de um estado que ostenta um título infame. Sua voz se torna mais grave, a expressão mais séria.
“Apesar dos avanços, Mato Grosso ainda é campeão nacional em violência contra a mulher, especialmente em feminicídios”.
A frase paira no ar do estúdio. É uma confissão, uma denúncia e um chamado à responsabilidade. Como pode o mesmo estado que confere tanto poder político a uma mulher ser tão letal para tantas outras?
“Esse problema persiste, mesmo com o aumento da presença feminina na política, e é um reflexo de uma sociedade que, em determinadas áreas, ainda carrega traços machistas e uma cultura de desconfiança em relação às mulheres em posições de liderança”, ela diagnostica, com a precisão de quem analisa o problema de dentro. A cultura do machismo, arraigada, silenciosa e muitas vezes institucionalizada, é um monstro difícil de abater. Ele não se intimida com diplomas ou cargos; ele se alimenta do silêncio, da impunidade e de uma estrutura social que, por séculos, normalizou a submissão feminina.
A luta, portanto, não pode ser apenas individual. “Assim, a luta pela autonomia das mulheres e a garantia de seus direitos é fundamental. É um dever de todos nós, políticos e sociedade, questionar e combater essa violência”. Ela se inclui na responsabilidade, usa o pronome “nós”, convocando cada cidadão, cada instituição, a assumir sua parcela no combate.
A análise se aprofunda, tornando-se mais técnica. Ela aponta as falhas do sistema que deveria proteger, mas que tantas vezes falha de maneira fatal. “As medidas protetivas muitas vezes falham, e isso nos leva a analisar como o Estado pode sair fortalecido em suas ações”. Não basta a mulher ter a coragem de denunciar e obter uma ordem judicial. É preciso que essa ordem seja um escudo real, não um pedaço de papel que o agressor desrespeita impunemente até que o pior aconteça.
“É preciso que medidas efetivas sejam implementadas para realmente proteger as mulheres que se encontram em situações de vulnerabilidade”, clama. Sua fala é um apelo por um Estado mais presente, mais forte e mais eficiente. Mas ela sabe que a repressão, por si só, não basta. A solução, para ser duradoura, precisa começar muito antes do primeiro tapa, da primeira ameaça. “Acredito que a educação e o fortalecimento das redes de apoio devem ser prioridades, pois a prevenção é a melhor forma de combatê-los”.
Feminicídio zero: a utopia como projeto
A denúncia, por mais contundente que seja, não é o ponto final de sua atuação. Janaína Riva é uma mulher de ação, e sua principal bandeira no momento é um projeto ambicioso, quase utópico em sua nomenclatura, mas profundamente pragmático em sua concepção.
“Um dos projetos que estou defendendo é o de uma Política Estadual do Feminicídio Zero”, anuncia. O nome é uma declaração de guerra, uma meta que recusa a aceitação de qualquer morte como inevitável. Ela explica que a proposta vai muito além do simples endurecimento de penas, uma solução frequentemente apontada, mas de eficácia limitada. “O projeto visa não apenas aumentar as penas, mas incentivar a criação de uma rede sólida de apoio às vítimas, com recursos e medidas reais”.
Essa rede é o coração da proposta. Significa integrar delegacias, sistema de justiça, saúde, assistência social e abrigos. Significa garantir apoio psicológico para que a mulher possa reconstruir sua autoestima, e independência financeira para que possa romper o ciclo de dependência que a prende ao agressor. Significa, em última análise, oferecer uma saída real, um caminho seguro para uma nova vida.
Ela reconhece a dimensão do desafio. Mudar uma cultura, reestruturar o Estado e garantir recursos para uma política tão abrangente é uma tarefa hercúlea. Mas o cansaço não transparece em sua voz. O que se ouve é determinação. “É um desafio, mas estamos aqui para mostrar que é possível melhorar esta realidade se todas as esferas se unirem em torno da causa”.
A entrevista se aproxima do fim. A ilha de luz no estúdio parece ter se expandido, iluminando não apenas uma parlamentar, mas a complexa tapeçaria da condição feminina em um Brasil profundo, cheio de contradições, de dores ancestrais e de uma esperança teimosa que se recusa a morrer.
A trajetória de Janaína Riva é um testemunho. É a prova de que o poder, quando exercido com propósito e sensibilidade, pode ser uma ferramenta de transformação. Ela é a herdeira de uma política tradicional que aprendeu a subverter por dentro, usando as mesmas ferramentas do sistema para lutar por aqueles que o sistema tantas vezes esquece. Sua voz, que começou como um eco assustado de uma convocação inesperada, tornou-se hoje um dos sons mais nítidos e potentes na defesa da vida das mulheres de Mato Grosso.
Ao me despedir, agradecendo sua presença, sei que a luta continua para além das câmeras e dos microfones. A cada amanhecer em Mato Grosso, o paradoxo se renova. Mas, em meio aos campos de chumbo da violência, a voz de aço de Janaína Riva e a força de seus 82 mil votos são a semente de que uma nova colheita é possível. Uma colheita de respeito, de segurança e de um futuro em que o "Amor Sem Medo" não seja um projeto, mas uma realidade.
Nossa República, o programa, volta na próxima semana. A luta, essa, continua em todos os lares, em todas as ruas, em todos os instantes, inclusive aqui!