Tenho especial carinho pelas madrugadas. Pelas horas mágicas em que a rotina dá lugar ao repouso, quando os únicos compromissos são os sonhos e acontece a experiência quase mística, transcendental, do silêncio.
Uma outra atmosfera parece coexistir com tudo aquilo que normalmente nos cerca, uma dimensão diferente, encontrada entre o espreguiçar de um gato, o farfalhar das asas de uma coruja e o caminhar de um lobo. Um mundo onde habitam os encantados, entremundo coberto por transparentes véus, iluminado pela lua, com as estrelas por testemunhas.
Que desperta as crianças, fascina poetas e sonhadores, inspira apaixonados, atormenta os assombrados.
Imersa na quietude, ouço a voz que me sussurra e que o mundo insiste em calar, que sabe tanto de mim e fala com tamanha propriedade que me assusta.
É ela quem me faz as perguntas mais incômodas: por que me saboto tanto, por que às vezes tenho medo de ser feliz, se penso mesmo que não mereço tudo de bom que tenho recebido...
Em algumas noites me canso dela, finjo indiferença ao beber um copo d´água e a deixo falando sozinha. Em outras, convido a contemplar a lua ao meu lado.
Ela me pega pela mão e aponta caminhos, conta segredos, dá conselhos que quase sempre não sigo, valida minhas percepções.
Reaviva lembranças, traz de volta outros tempos, alegra-se na minha alegria, chora comigo em minha tristeza.
É a ela quem confesso as coisas mais inconfessáveis. E ela não julga, acolhe. No máximo, ri de mim, debochada, cínica. Maravilhosa.
Uma voz que também grita, rosna, geme, gargalha e canta. Que consegue ser tão discreta e, ao mesmo tempo, se fazer tão presente.
Eu, que já quis tantas vezes emudecê-la, hoje espero por ela ansiosamente nas horas insones e solitárias. É minha cúmplice, parceira de toda a vida, companheira até o fim. Ela sou eu e eu sou ela. É minha parte mais livre, selvagem, autêntica. E desconcertantemente sincera.
Simara 23/10/2020
A madrugada é a golden hour.
1 comentários