CONTEMPORANEIDADES Quinta-feira, 29 de Outubro de 2020, 08:03 - A | A

Quinta-feira, 29 de Outubro de 2020, 08h:03 - A | A

NINA RICCI

Escrevo porque não consegui te escutar

Nina Ricci

[email protected]

Artista, licenciada em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo e recentemente ingressou oficialmente na formação continuada em Artes do diálogo pela Universidade de Nós Pessoas. @ninamricci

 [Atenção, este texto contém interferências frequentes, e é parte da série de aquecimentos “Ativando a resistência muscular para a escuta”] 

Eu/ não / tô
te ou/ vin/ do EU NÃO TÔ TE OUVINDO

(não, não é o microfone que está desligado)

Eu - não - estou - te - ouviiiiindo

(eu sei que você mandou por áudio, não consegui te escutar)

Eu não estou te ouvindo

(não consigo esperar o fim da frase meu sangue já ferve)

NÃO CONSIGO TE OUVIR!

.
.
.

(estou tentando melhorar o meu sistema de escuta...Alguém pode me ajudar?)
(como eu faço para aprender a escutar? Tem algum botão?)

AINDA NÃO CONSEGUI TE ESCUTAR

(vou tentar mais uma vez, vou desligar e ligar de novo, talvez algo se perca)

Eu não estou te ouvindo, eu não estava te ouvindo, eu não consigo te ouvir. Sinto muito. Isso me faz muito mal, não conseguir escutar o que você fala.

Mas o que você fala às vezes, fere demais. Me rasga, entende? É algo que ainda não consegui controlar. Quando você me interrompe, ou eu te interrompo… é cansativo.

Quando você fala que homem é tudo igual, que as mulheres ‘naturalmente’ sabem como cuidar, que sempre cuidam de tudo. Eu não consigo ouvir, sabe? Eu não consigo terminar de ouvir sem explodir de raiva porque isso NÃO ME PARECE NATURAL.

Eu te respeito, eu preciso te respeitar. Preciso respeitar a sua fala, sua existência… ainda que seja tão dolorido.

(Porque se eu não te escutar, como vamos dialogar?)

É que ainda não consegui escutar você dizendo que a mulher nasceu do homem e para ele, que foi assim que Deus fez porque está escrito naquele livro onde você encontra a verdade. Mas é a tua verdade, lembra? É a verdade de vocês…

Eu ainda não consegui não te interromper quando você diz que esse governo é igual a qualquer outro, que é normal todos os atentados que eles declaradamente fazem. Que estou exagerando… Na verdade eu não consegui escutar que você votou nele. Até hoje.

Eu sinto muito por não conseguir respirar e porque a minha fala sai mais alta, sem que eu consiga dimensionar. Ainda é mais forte do que eu.

(Me sinto… ignorante!)

Eu não consegui ouvir dizer que ela procurou, que se ela não tivesse bebido, se não tivesse saído (se não existisse!) isso não aconteceria. Não dá! Você entende o quanto isso nos fere?

(algumas coisas parecem ser impossíveis de ouvir, e talvez sejam mesmo. Deveriam sumir assim que são proferidas. Alguém já aprendeu como discernir?)

Eu queria que você me escutasse também.

Eu queria tanto... você já consegue me escutar? Vocês estão me ouvindo?

(não precisa o microfone... estou aqui bem na sua frente)

Eu não queria gritar, sei que talvez você não quisesse também, mas às vezes as coisas nos rasgam e nos atravessam, então é difícil permanecer respirando suavemente e escolher bem as palavras.

(Mas precisamos)

Convivemos num sistema que mata o tempo em troca de dinheiro, mata o diálogo em troca de dominação, mata a escuta em troca de ódio. E mata pessoas por falta de escuta.

(acho que cortaram os sinais de comunicação)

E porque querem nos afastar, porque querem que eu veja em você meu inimigo... eu não consegui mais te escutar.

(Alguém pode me ajudar? Alguém pode nos ajudar?)

É preciso dialogar: o maior desafio possível. Dialogar, como conseguir ouvir, exige resistência física e emocional. Então recentemente me rematriculei naquele velho curso… estou treinando. Toda hora tem um desafio novo, é um plano bastante intenso e complexo esse que baixei.

Não tem só aula virtual, quando você menos espera já tem uma pessoa nova para ser sua professora. Trabalha-se em vários canais ao mesmo tempo, é multidimensional.

É preciso treinar a escolha da linguagem oral, corporal, grafada… Mas sobretudo a bendita escuta.

E vou dizendo o que ouvi: não é qualquer escuta. É preciso abrir-se para o risco de conhecer algo novo. Até mesmo tornar-se outra pessoa... pois é isso que acontece quando se escuta verdadeiramente, deixamos um pouco e somamos um pouco.

Ah...eu sei, também preferiria treinar sozinha, no meu tempo, escondida de preferência - sem que ninguém pudesse me ouvir. (ouve a contradição?)

É possível tentar sozinha, e dizem que faz bem, mas as verdadeiras auto avaliações só acontecem quando praticamos juntas/os/es. É um curso essencialmente coletivo.

Mas sabe, posso dizer que estou um pouco mais calma, escrever é uma ferramenta indicada para os casos mais graves - quando realmente não damos conta da oralidade. Sei que parece um daqueles pacotes que ninguém quer entrar, tamanho o desafio.

Não poderia querer te convencer a nada, mas a parte boa é que no processo a gente compreende muita coisa sobre nós mesmas, sobre como o mundo se estrutura e como deslocar alguns lugares de poder desse sistema. Ao menos é algo que intuo.

(Intuir é uma forma de escuta, sabia?)

Estou te enviando um teste gratis de sete dias, podemos treinar juntas/os/es alguns exercícios iniciantes como as categorias “Conversas de elevador menos vazias”; “Fale mais sobre esse assunto que gosta, quero saber como é para você”; ou “Resistindo ao falso diálogo diante de comentários odiosos em filas de banco”.

(esse último é um pouco mais difícil, confesso que às vezes preciso acionar a emergência e colocar fones de ouvido)

Não saber como dialogar nos mata, e não quero que ninguém mais morra por isso. Ninguém mais deveria morrer assim.

É possível recomeçar?

Vocês… me escutam? Estou aqui... respiro, vamos tentar. 



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