Em um dos passeios, feitos ainda em 2019, tinha levado minha filha para brincar no parquinho. Estava sentada no chão emborrachado, próxima a um dos escorregadores, olhando ela brincar, quando uma menina, que parecia ter 8 ou 9 anos, parou em minha frente e perguntou: “Você é homem ou mulher?”. Respondi: “Sou mulher”. Ela continuou olhando para mim e deu sequência: “Mas você tem cabelo curto”. Sorri, pois já esperava esse tipo de afirmação, e disse: “Mas mulher também pode usar cabelo curto”. Ela saiu. Deu a volta no escorregador e voltou. “Mas, você parece homem”. Não continuei o diálogo. Ela também saiu correndo para aproveitar os tantos outros brinquedos do parquinho.
Essa foi a primeira vez que uma criança me questionou sobre o meu cabelo. Mas não foi a primeira vez que recebi questionamentos sobre ele. Desde novembro de 2017 raspo o cabelo e já ouvi inúmeros comentários. “Você é lésbica?”, “Você está fazendo alguma promessa?”, “Nossa, mas seu cabelo era tão bonito”, “Você era mais bonita de cabelo comprido”, “Que coragem, hein?” e assim seguem as perguntas e comentários. Esses são os mais frequentes e que só surgiram depois que surgi na sociedade com o meu cabelo na máquina 3.
O comentário da menina que parecia ter 8 ou 9 anos não me incomodou. Ela é apenas uma criança. O que me incomoda são os estereótipos criados e reforçados diariamente em nossa cultura e sociedade. São eles que contribuem para que discursos de exclusão e de segregação sejam mantidos, fazendo com que um simples corte de cabelo em uma mulher não seja reconhecido como opção. Afinal, ter cabelo comprido é considerado o ideal para que você seja vista e percebida como mulher.
Chimamanda Ngozi Adiche, em seu livro O perigo de uma história única, vem nos alertar sobre esses discursos únicos e quão problemáticos eles são. Segundo ela, a disseminação de uma única história vai contribuir para a exclusão e fazer com que aquelas pessoas que não fazem parte do ideal sejam percebidas como incompletas.
É claro que a menina que parecia ter 8 ou 9 anos não compreende toda essa interligação histórica, cultural e de linguagem. (Quero acreditar que as outras pessoas, que questionam sobre o meu cabelo raspado, também não) Mas, as perguntas e comentários feitos por ela dão sinais de que o ideal de mulher continua sendo repassado de “geração para geração”, fazendo com que experiências sejam simplificadas e histórias negativadas.
É importante compreender que esse discurso que identifica e idealiza a mulher a partir do comprimento do cabelo não é de agora, assim como inúmeros outros discursos segregadores sobre a mulher. Esse é um discurso secular, também disseminado e reforçado pela mídia, que contribui historicamente para a imposição de representações, identidades e diferenças pautadas na dualidade entre o certo e o errado, como também mantém padrões, além de mitificar e mistificar o que é ser mulher.
A desconstrução de estereótipos históricos e culturais não acontece no estalar dos dedos. É preciso resistir, questionar, refutar conceitos marcados por imposições e que não respeitam escolhas e liberdades. É necessário que nossos discursos sejam reconstruídos, pois como diz Adiche “quando rejeitamos a história única, percebemos que nunca existe uma história única sobre lugar nenhum, reavemos uma espécie de paraíso”.