Previsto como modalidade preferencial de proteção há mais de uma década, o acolhimento familiar ainda representa uma realidade distante para a maioria das crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade no Brasil. Em entrevista ao programa "Papo com Ela", a juíza Ana Paula Gomes, auxiliar da Corregedoria-Geral de Justiça de Mato Grosso, detalhou os desafios para a implementação do serviço, que, apesar de ser mais econômico e benéfico para o desenvolvimento infantojuvenil, avança em ritmo lento no estado e no país.
O acolhimento familiar é uma política pública que organiza o recebimento de crianças e adolescentes, afastados temporariamente de sua família de origem por medida de proteção judicial, em lares de famílias voluntárias, previamente cadastradas e capacitadas. Diferentemente dos abrigos institucionais, esse modelo oferece um ambiente doméstico e afetuoso até que a reintegração familiar seja possível ou, em último caso, ocorra o encaminhamento para adoção.
A preferência por esse modelo está consolidada na legislação brasileira desde 2009, com a alteração do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A lei determina que o acolhimento em famílias deve ter prioridade sobre o institucional.
Para acelerar essa transição, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) publicaram, em 2023, uma recomendação conjunta estabelecendo metas progressivas. O objetivo é que, até 2027, pelo menos 30% das crianças e adolescentes acolhidos no país estejam inseridos em Serviços de Acolhimento em Família Acolhedora.
No entanto, os números atuais revelam um grande abismo entre a meta e a realidade. "Nós estamos bem atrasados. Na verdade, o Brasil está", afirma a juíza Ana Paula Gomes. Segundo ela, a média nacional de crianças em acolhimento familiar é de apenas 6%, enquanto em Mato Grosso o índice é ainda menor, em torno de 4%.
O cenário mato-grossense é representativo do desafio. De um total de 641 crianças e adolescentes acolhidos no estado, 614 estão em abrigos institucionais e apenas 27 vivem com famílias acolhedoras. O estado possui 93 instituições de acolhimento, mas somente 38 programas de família acolhedora implementados em seus 142 municípios.
Atualmente, apenas quatro cidades em Mato Grosso executam o serviço de forma plena: Sinop, Alta Floresta, Santo Antônio do Leverger e Tangará da Serra. Outras, como Dom Aquino e Itiquira, estão em fase inicial. A capital, Cuiabá, sancionou a lei que cria o serviço somente em julho de 2025 e agora trabalha nos próximos passos para sua efetivação.
Segundo especialistas e estudos na área, os benefícios do acolhimento familiar são vastos. A juíza destaca que, para uma criança já fragilizada pela ruptura com seu lar, a vivência em uma instituição pode agravar o trauma. O modelo familiar, por outro lado, oferece um cuidado individualizado.
"Ele traz a individualização do tratamento com aquela criança e adolescente, ele traz o afeto", pontua Gomes. Ela contesta a ideia de que o apego à família provisória seja prejudicial, argumentando que a experiência de afeto é fundamental para a formação de um adulto emocionalmente saudável. "A criança que aprende a ter e receber afeto desde pequena, ela vai ser um adulto saudável".
Além do suporte emocional, a convivência comunitária é outro diferencial. Enquanto em um abrigo é logisticamente complexo levar dezenas de crianças para atividades externas, na família acolhedora a criança participa da rotina da casa e da comunidade, como ir ao supermercado, à igreja ou a uma praça, garantindo seu direito à convivência comunitária.
Entenda os entraves
Se o modelo é mais benéfico e, inclusive, mais econômico, por que sua implementação é tão lenta? O principal obstáculo, segundo a magistrada, é a "cultura da institucionalização", um pensamento herdado dos antigos orfanatos de que é mais simples e seguro manter todas as crianças juntas em um único local.
Outro entrave é de ordem financeira e política. Embora o serviço de família acolhedora seja menos custoso — pois exige apenas uma bolsa-auxílio de caráter indenizatório para a família e uma equipe técnica reduzida para acompanhamento —, muitos municípios hesitam em implementá-lo. "Os municípios ficam esperando que a União faça parte, que o Estado faça", explica Gomes.
Apesar da responsabilidade primária ser municipal, a falta de repasses federais e estaduais com destinação específica para este fim faz com que o tema perca prioridade no orçamento. "Priorizam-se outras coisas e se esquecem que criança e adolescente é prioridade absoluta", ressalta a juíza.
Em Mato Grosso, um grupo de trabalho formado pela Secretaria de Estado de Assistência Social e Cidadania (Setasc), com a participação do Judiciário, busca fomentar a política. Segundo a juíza, o governo estadual se comprometeu a direcionar verbas de apoio aos municípios que aderirem ao programa.
Encontrar voluntários é outro desafio contínuo. As equipes técnicas precisam realizar um "trabalho de formiguinha" de conscientização na sociedade. A juíza esclarece que o perfil buscado é de pessoas com "espírito de solidariedade, e não de parentalidade", uma vez que a família acolhedora não pode adotar a criança, regra que visa impedir burlas à fila de adoção.
O dilema da família extensa
Um ponto crítico que afeta diretamente o tempo de permanência de uma criança no sistema de acolhimento é a busca pela chamada "família extensa" (avós, tios, primos). A lei determina que, antes da adoção, sejam esgotadas as tentativas de reintegração com parentes.
No entanto, a juíza aponta uma "interpretação errada" da lei por parte de algumas autoridades. O ECA define família extensa como parentes com os quais a criança "convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade". Contudo, processos se arrastam por anos na busca por parentes distantes, sem qualquer vínculo com a criança, o que atrasa uma solução definitiva para sua vida.
"Para ser juiz da infância e promotor da infância é preciso ser corajoso", defende Ana Paula Gomes. Ela argumenta que é preciso aplicar a lei de forma estrita e ter a coragem de destituir o poder familiar quando a reintegração se mostra inviável, dando à criança a chance de ser adotada antes que cresça e perca o interesse de pretendentes.
O acolhimento, por lei, deve durar no máximo 18 meses. A morosidade na definição do futuro da criança, seja pela busca de parentes ou por outros fatores, pode fazer com que ela passe toda a infância e adolescência em instituições.
Como mensagem final, a juíza incentiva a sociedade a conhecer o serviço. "Se a pessoa sentir no seu coração que quer ajudar uma criança e um adolescente, procura o serviço de família acolhedora. Isso às vezes vai te despertar um sentimento de solidariedade e vai te fazer muitas vezes salvar a vida de uma criança".
Assista à entrevista na íntregra:
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