O Brasil é referência mundial em transplantes realizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas ainda enfrenta um grande desafio para ampliar o número de cirurgias: a negativa das famílias no momento da autorização. Em Mato Grosso, sete em cada dez famílias dizem “não” à doação de órgãos, segundo dados oficiais de 2024. A recusa reduz drasticamente as chances de milhares de pessoas que aguardam na fila de espera por um transplante.
Para a médica Heloíse Helena Siqueira Borges, da Central Estadual de Transplantes, o principal motivo da negativa é cultural. “Nós, brasileiros, não gostamos de falar sobre morte. E quando chega o momento da decisão, muitas famílias dizem: ‘Eu até doaria, mas não sei se o meu parente queria’”, afirma.
Sem uma manifestação prévia em vida, a incerteza acaba pesando e resulta na recusa. A médica reforça que, no Brasil, a autorização para a doação depende exclusivamente da família. Por isso, é essencial que as pessoas comuniquem em vida o desejo de serem doadoras. “Quem decide são os familiares. Se eles não souberem, não há como prosseguir com a doação”, explica.
Heloíse lembra ainda que, mesmo em situações de profunda dor – como a perda de um filho –, algumas famílias conseguem transformar o sofrimento em esperança. “Há casos em que a criança evolui para morte encefálica, e os pais, mesmo devastados, conseguem pensar que seu filho viverá em outras pessoas. Isso ressignifica o luto”, diz.
Diagnóstico de morte encefálica é seguro e rigoroso
A desconfiança de parte da população sobre o diagnóstico de morte encefálica também contribui para a recusa. Mas, segundo a médica, o procedimento é estritamente regulado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) desde 2017.
A determinação da morte encefálica envolve três médicos capacitados, avaliação clínica detalhada, teste de apneia e exames complementares, como eletroencefalograma, Doppler transcraniano ou angiografia. “Não é qualquer médico que pode abrir um protocolo. Há critérios rígidos, exames obrigatórios e toda a documentação é revisada pela Central Estadual de Transplantes”.
Transplantes possíveis e situação das filas
Alguns transplantes, como o renal, também podem ser feitos entre vivos. Já tecidos como córneas podem ser doados até seis horas após a parada cardíaca, independentemente da causa da morte.
Em Mato Grosso, a fila por córneas foi zerada em 2024, um dos poucos estados brasileiros a alcançar o feito. Atualmente, qualquer paciente que precisa do transplante espera, no máximo, cinco dias. No entanto, a fila renal segue como a mais longa, seguida pelo transplante hepático.
Nos últimos anos, o estado vem aumentando o número de doações. Em 2023 foram 14 doadores, que resultaram em 22 órgãos ofertados. Em 2025, até setembro, foram 12 doações confirmadas. “As famílias estão mais sensibilizadas, mas ainda é pouco diante da demanda”.
Outra dúvida comum das famílias envolve o velório após a doação. A médica explica que o procedimento não impede rituais funerários, e o corpo é devolvido em condições adequadas para despedida. A liberação ocorre entre 48 e 72 horas, variando conforme cada caso e a necessidade de procedimentos legais, como quando há morte violenta.
Decisão deve ser comunicada em vida
Embora existam documentos e até registros em cartório para declarar o desejo de doar, a legislação brasileira determina que a autorização final é da família. O registro pode ajudar, mas não substitui a conversa.
“É fundamental que as famílias conversem sobre isso antes. No momento do luto, essa clareza faz toda diferença para que o desejo do doador seja respeitado”, reforça a médica.
Heloíse encerra com um chamado à reflexão. “É difícil pensar na morte, mas a doação de órgãos é o gesto mais puro de amor. É transformar dor em esperança. É permitir que alguém que sofre na fila possa caminhar, viver, ver seus filhos crescerem. Esse diálogo precisa fazer parte do nosso dia a dia.”
Assista à entrevista na íntegra:






