CULTURA Segunda-feira, 24 de Novembro de 2025, 18:45 - A | A

Segunda-feira, 24 de Novembro de 2025, 18h:45 - A | A

NEGRITUDE E ARTE

André D' Lucca: da personagem icônica ao ativismo pelo letramento racial

Mauro Camargo

Há 25 anos, uma mulher negra, rica e envolvida em todos os esquemas políticos de Mato Grosso surgiu nos palcos cuiabanos para incomodar. Dona Almerinda não era só humor. Era crítica social afiada, era confronto com o poder, era a voz que ninguém dava conta de calar. Mas Dona Almerinda era um personagem. Por trás da peruca, da maquiagem de duas horas, dos seios de espuma e do catwalk impecável estava André De Lucca, um ator de Cuiabá que decidiu usar a arte para falar o que a sociedade preferia silenciar.

Hoje, aos 48 anos, André D' Lucca está reescrevendo sua própria narrativa. Após um acidente grave no palco, uma tentativa de suicídio que mobilizou a cidade e uma mudança para São Paulo durante a pandemia, o artista retornou a Mato Grosso transformado. Não abandonou Dona Almerinda, mas a ressignificou. E, principalmente, descobriu sua verdadeira missão: o letramento racial.

"Eu era formado em Direito, rodei parte do mundo, mas nunca tive letramento racial. Nunca estudei as relações raciais. Só que eu sofria os efeitos dela. Sofria o racismo na pele", conta André, refletindo sobre sua trajetória. "Quando eu ia falar com as pessoas sobre as situações que vivia, elas falavam: 'Isso é frescura, é mimimi'. Hoje eu sei nominar cada tipo de racismo."

Essa descoberta veio em um momento crítico. Ainda em muletas, recuperando-se do acidente, André encontrou um vídeo da intelectual Bárbara Carini contando a linha do tempo do povo negro. O impacto foi profundo. "A gente começa a história do povo negro a partir da escravização, como se nossos antepassados brotassem no navio negreiro. Mas a gente tem que olhar para trás para ressignificar o presente e construir o futuro."

O conceito que melhor resume essa filosofia é Sankofa, uma palavra africana que significa exatamente isso: voltar e pegar. André transformou Sankofa em um espetáculo teatral que viaja pelo país, educando e conscientizando sobre a ancestralidade negra. Mas o letramento racial não é apenas tema de palco para ele. É vida, é prática, é uma responsabilidade que assumiu com seriedade.

O processo de branqueamento e o auto ódio

Uma das revelações mais impactantes de André foi quando olhou para sua própria história e percebeu que havia seguido "exatamente o roteiro que planejaram" para ele. Cresceu ouvindo dentro de casa frases como "a gente precisa clarear a família" — ditas em tom de brincadeira, mas com peso de verdade. E fez exatamente isso: casou com uma mulher branca, com olhos claros, tudo para que sua filha nascesse com pele mais clara.

"Isso era inconsciente, mas tinha também um grau de consciência", reconhece. "Depois que mergulhei no letramento, olhei para trás e entendi toda a estrutura que me foi imposta."

Essa tomada de consciência o levou a questionar a doença que, segundo ele, acomete a população negra no Brasil: o auto ódio. "A gente é criado para se odiar. Desde o primeiro dia de aula, as pessoas zoam tua pele, teu cabelo, teu nariz, tua boca. A criança não sabe processar aquilo e começa a se odiar."

Hoje, com cabelos longos pela primeira vez na vida — após uma alopecia emocional que o deixou careca durante anos — André simboliza seu próprio processo de negritude. "Você não nasce preto no Brasil. Você torna-se preto. Tem que tomar posse da sua negritude, porque senão intimamente você tenta não ser."

O racismo estrutural em Mato Grosso

André não fala de racismo de forma abstrata. Vive-o diariamente. Segundo boletins de ocorrência, o estado é um dos mais racistas do país, proporcionalmente, argumenta. As regiões de Sorriso, Sinop e Lucas do Rio Verde concentram os piores casos de discriminação que o ator experienciou.

"Fui apresentar em Vera e o prefeito, quando viu minha foto na véspera, cancelou. Falou que aquilo era macumba. Na minha cidade não", relata, referindo-se a uma roupa com búzios que usava. "Quando fui para dentro de uma sala de aula e apresentei lá, foram dois shows. Os vereadores da extrema direita também assistiram, me pediram perdão. Mas a retratação nunca chegou."

As abordagens policiais também marcam sua trajetória. "Questionavam de onde eu tinha tirado dinheiro para comprar o carro. Perguntavam se eu estava lidando com coisa errada. Sempre me tratam como se eu estivesse mentindo quando falo que sou ator."

O que agrava a situação é ser negro e LGBT em Mato Grosso. "O fardo é muito pesado. Você tem que lidar com múltiplos preconceitos. As pessoas te julgam te olhando e elas já sentenciam."

Espiritualidade e o racismo religioso

André também enfrentou o que chama de "racismo religioso" — a demonização das religiões de matriz africana. Criado católico de forma "compulsória", depois evangélico, depois pastor evangélico por seis meses, ele finalmente encontrou conexão nas religiões de matriz africana.

"Eu tive muito medo porque somos criados para ter medo, por causa do racismo religioso. Mas quando frequentei um terreiro de candomblé, chorei muito. A gente cria tanta coisa na cabeça, escuta tanta coisa equivocada e vai reproduzindo."

Iniciado no Ifá, André reconhece que toda espiritualidade segue padrões similares — defumação, cantoria, oferenda aos antepassados — mas também critica a homofobia e transfobia encontradas em alguns terreiros. "É chocante ver pessoas que sofrem preconceito o tempo todo reproduzindo preconceito na primeira oportunidade."

A arte como ferramenta de transformação

Com quase 750 mil seguidores no Instagram, André transformou a plataforma digital em vitrine para seus trabalhos. Isso lhe permitiu aumentar significativamente seus cachês de palestrante — passou de valores que considerava injustos para cobrar pelo menos R$ 15 mil por apresentação.

"O Instagram me trouxe visibilidade, mas não me dá dinheiro diretamente. Indiretamente, é uma grande vitrine. Trabalho menos e ganho mais", explica.

Dona Almerinda ainda existe, mas transformada. "Ela está fazendo o caminho de volta. Durante anos buscou branqueamento, fez 108 plásticas, mudou nariz, boca, queixo, cabelo. Agora está voltando às origens, tornando-se negra novamente."

Paralelamente, André desenvolve dois novos espetáculos: Sankofa, sobre ancestralidade e filosofia africana, e Fênix, que conta sua trajetória pessoal marcada pelo racismo e pela tentativa de suicídio. "Tudo é letramento. Tudo é conscientização."

Mato Grosso: entre a riqueza e o conservadorismo

André ama Mato Grosso profundamente. Tem família, filhos, vida estabelecida. Mas também sofre com as contradições do estado. "Mato Grosso lidera a produção agrícola do país, exporta tecnologia para o mundo inteiro. Mas é campeão nacional de feminicídio, campeão nacional de hanseníase — uma doença bíblica que não cessa."

O que mais incomoda é o conservadorismo radical e o bolsonarismo enraizado, principalmente em regiões que receberam migrantes de outras partes do Brasil e do Sul. "Tem gente que chega e fala: 'Ah, bando é tudo feio, tudo preguiçoso'. Nunca conseguiu entender a cultura da beira do rio, o calor de Cuiabá."

Mas reconhece a beleza do cuiabano autêntico: mestiço, ribeirinho, humilde, acolhedor. "Cuiabano raiz é muito miscigenado, negro, indígena. É isso que me atrai no povo. É o linguajar, é esse jeito de ser."

André encerra suas reflexões com um apelo direto: "Valorize os artistas locais. A galera daqui dá muito valor a quem vem de fora, a standups de fora que vêm, pegam o dinheiro e vão embora. Valorizem a literatura daqui e os artistas daqui. Mato Grosso tem muita coisa boa."

Para ele, a arte não é entretenimento. É ferramenta de transformação social, de reparação histórica, de conscientização. É o caminho pelo qual André D" Lucca escolheu voltar e pegar — como um Sankofa que olha para trás, absorve o conhecimento ancestral e reconstrói o futuro com inteligência, sensibilidade e propósito.



Comente esta notícia

Nossa República é editado pela Newspaper Reporter Comunicação Eireli Ltda, com sede fiscal
na Av. F, 344, Sala 301, Jardim Aclimação, Cuiabá. Distribuição de Conteúdo: Cuiabá, Chapada dos Guimarães, Campo Verde, Nova Brasilândia e Primavera do Leste, CEP 78050-242

Redação: Avenida Rio da Casca, 525, Bom Clima, Chapada dos Guimarães (MT) Comercial: Av. Historiador Rubens de Mendonça, nº 2000, 12º andar, sala 1206, Centro Empresarial Cuiabá

[email protected]/[email protected]

icon-facebook-red.png icon-youtube-red.png icon-instagram-red.png icon-twitter-white.png