CULTURA Segunda-feira, 19 de Junho de 2023, 10:32 - A | A

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EM BUSCA DE ESPAÇO

Como HQ sobre 'cura gay' simboliza o bom momento dos quadrinhos LGBTQIA+

Diogo Bercito
Folhapress

Há dez anos, Mário César começou a ouvir falar em "reorientação sexual", um tratamento conhecido pelo jargão "cura gay". O assunto estava em pauta devido às frustradas tentativas de alguns legisladores brasileiros de regularizar a prática.

César leu reportagens e depoimentos de pessoas que tinham passado por esse tratamento, desacreditado pela ciência e proibido no país, apesar de ainda ser praticado. "Fiquei horrorizado", diz o artista, que decidiu transformar sua ojeriza na história em quadrinhos "Bendita Cura".

O livro, publicado de modo independente em três volumes a partir de 2018, virou uma espécie de símbolo dos gibis nacionais LGBTQIA+. Venceu o Troféu HQ Mix e foi finalista do prêmio Jabuti. Esse trabalho foi por fim consagrado este mês com a publicação de uma edição definitiva pela Conrad, com capa dura.

O lançamento foi na Poc Con, a feira de quadrinhos LGBTQIA+ que o próprio César criou em 2019 com o colega Rafael Bastos Reis, da série "Pornolhices". Gratuita, a edição deste ano aconteceu no fim de semana da Parada do Orgulho LGBTQIA+ de São Paulo.

Os dois eventos -o lançamento e a feira- dão conta de um bom momento nas HQs brasileiras, com a abertura de novos nichos e a reivindicação de mais espaço por artistas de fora das bolhas. São também sinal da consolidação das temáticas LGBTQIA+.

Era bem diferente quando César começou a trabalhar, quando era um dos únicos artistas nacionais a discutir abertamente sua sexualidade. "Bendita Cura" só saiu por meio de financiamento coletivo e, no caso do último volume, com o apoio do Proac, o Programa de Ação Cultural do Governo do Estado de São Paulo.

O gibi conta a história de um jovem gay, vítima de pais repressores que querem reverter sua orientação sexual. O leitor acompanha sua tortura, que César não se furta em mostrar. O rapaz força o vômito depois de se masturbar pensando em homens, por exemplo. Leva uma surra da mãe por ter comportamentos ditos femininos demais.

"Eu queria mostrar a verdade na cara e não me segurei", diz. "Quando li os relatos, me deparei com muitos casos de suicídio, coisas muito pesadas. Não tinha como ser leve."

Dito isso, "Bendita Cura" não se perde na pornografia da violência. Há uma marcante generosidade no texto de César, que permite momentos de ternura ao seu personagem. "Não queria que fosse mais uma história de um gay que morre no final", diz. "Queria uma mensagem de esperança, de que as coisas vão melhorar."

Essa escolha, afirma, vem de sua própria experiência, crescendo no anos 1990 cercado de narrativas que pareciam indicar que homossexuais não podem nunca ter um final feliz. "Era o gay de quem riam, o que morria de Aids, o que era espancado."

César desenhou no lápis, finalizou com nanquim e coloriu no computador, onde pôs também as letras. O acúmulo de funções explica o tempo prolongado desde a conceptualização em 2013 até a publicação dos primeiros capítulos online, em 2017.

As cores são o ponto forte de seu projeto estético. César alterna entre o azul e o rosa, como provocação a quem diz que o primeiro pertence aos meninos, e o segundo, às meninas.

Assim, César rebate a acusação feita por setores conservadores de que a população LGBTQIA+ quer impor uma ideologia de gênero no restante da sociedade. "É o machismo que é uma ideologia de gênero", diz. Assim como a ideia de que um menino tem que jogar futebol, e uma menina, fazer balé, afirma. O final feliz de seu personagem, nesse sentido, é por fim aceitar que ele pode fazer o que bem entender.

César conta que ele e Bastos tiveram a ideia de reunir artistas LGBTQIA+ na Poc Con porque sentiam que eles raras vezes eram convidados para as outras feiras, onde não tinham destaque nem participavam de debates. "Quisemos juntar nossas forças e nossos públicos."

A primeira edição, em 2019, "deu muito mais certo do que o imaginado", ele conta. Tinham espaço para 50 mesas. No primeiro dia de inscrições, bateram a meta. No final do período, tinham 345 interessados. "Onde estava esse povo todo?", questiona. Na edição deste ano, houve 130 artistas, entre expositores e convidados.

César credita o sucesso do evento a um sentimento compartilhado tanto por artistas quanto pelo público LGBTQIA+, de que o meio dos quadrinhos ainda sofre de bastante homofobia e misoginia no Brasil. HQs, afinal, entram na lista de "coisas de menino".



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