O maestro Fabrício Carvalho, em entrevista no programa Nossa República, veiculado pela TV Pantanal e disponível no YouTube, abordou a temática de seu novo livro, "Escute, se for capaz, o que as Big Techs silenciam enquanto você desliza a tela". A obra investiga como as grandes empresas de tecnologia, seus algoritmos e a inteligência artificial redefinem a forma como os indivíduos percebem o mundo, consomem informações e estabelecem relações.
Carvalho, que é maestro, condutor de orquestras e membro da Academia Mato-Grossense de Letras, apresenta uma perspectiva que mescla rigor intelectual com sensibilidade. Ele reflete sobre um cenário onde as escolhas pessoais podem não ser totalmente autônomas, em um contexto de constante conexão digital.
A transição de Fabrício Carvalho para a escrita e para a análise social não é recente. Ele relata ter sido "fruto de uma família que consumia muita cultura" e que sempre escreveu, inicialmente letras de música, mas também reflexões sobre a sociedade. Sua formação acadêmica na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), onde esteve desde os 12 anos como bolsista da orquestra sinfônica, o colocou em contato com pensadores da academia.
Apesar de ter iniciado a graduação em Engenharia Civil, por influência paterna, Carvalho optou pela música no terceiro ano. Ele descreve a música como "matemática emocionada", reconhecendo a natureza racional da engenharia e a fluidez emocional da arte. Seu primeiro livro, "Outros Ensaios", já fazia uma ponte entre os "ensaios" musicais e as reflexões literárias.
O novo livro, "Escute, se for capaz", surge de uma "perspectiva mais madura" do autor, que atualmente cursa doutorado em Política Social na UFMT. Ele explica que, embora a música possa levar à sensibilidade e à emoção, a política social "aprofundou fortemente a relação de classe", direcionando seu interesse para a dinâmica da sociedade.
Carvalho menciona ter atuado em política partidária e sido pró-reitor de cultura e extensão da UFMT por três mandatos, destacando sua familiaridade com o ambiente de "contradição" e "controvérsia". A escolha pelo doutorado em Política Social, e não em música, representa um "plot twist" em sua vida, um caminho para "reinventar" suas abordagens.
Nos estudos de doutorado, ele se dedicou ao "capitalismo de dados", aprofundando-se em autores como Karl Marx, e começou a investigar o que as Big Techs fazem com as informações pessoais dos usuários. Após 27 anos à frente da Sinfônica da UFMT, ele buscou um novo desafio, mergulhando nesse processo de pesquisa.
O maestro observa que as pessoas já possuem "uma certa consciência" de que estão sendo manipuladas no ambiente digital. No entanto, ele questiona "até que ponto essa consciência ela tá dizendo aquilo que realmente é o que tá acontecendo?". Ele exemplifica com a aceitação de cookies ou o fornecimento de dados, onde a consciência sobre as implicações pode ser limitada.
A percepção geral é que anúncios surgirão após uma pesquisa ou conversa, mas o livro busca explicar "como é que isso acontece", a "engenharia por trás da informação" que é fornecida. Carvalho ilustra com a situação de alguém que expressa o desejo de conhecer um local e, minutos depois, recebe ofertas de passagens.
Ele introduz o conceito de "capitalismo de vigilância", cunhado pela especialista Shoshana Zuboff. Nesse modelo, o capitalismo força um "meandro aritmético" para que empresas continuem lucrando, não mais pela venda da força de trabalho, mas pela transformação de dados em mercadoria. "A partir do momento que você clica e aceita tudo, você começa a fornecer dados e esses dados viram mercadoria", explica.
No livro, são apresentados dois conceitos que justificam a manipulação digital. O primeiro é a "infodemia", caracterizada pelo excesso de informação onde "todo mundo fala sobre tudo, todo mundo diz sobre tudo, todo mundo entende sobre tudo". Isso dificulta a distinção entre o que é verdade e o que é meramente interessante para o indivíduo.
A infodemia facilita a manipulação, pois as plataformas podem oferecer ao usuário "o que você quer ouvir", gerando uma dependência. "A internet me entende. Ela fala as coisas que eu quero ouvir, ela traz os produtos que eu quero consumir", comenta Carvalho, descrevendo uma "dopamina cerebral maravilhosa" que prende o usuário.
O segundo conceito abordado é o "controle por dispersão", onde o interesse de quem tem dinheiro se sobrepõe. "Quem domina esse interesse é quem tem dinheiro. Quem tem dinheiro é quem pode comprar. Comprar de quem? Das Big Techs", afirma o maestro, indicando que as grandes empresas de tecnologia "escondem muitas coisas e elas mostram tantas outras".
A manipulação, segundo Carvalho, transcende o aspecto comercial. Ela se estende aos campos político e social, influenciando, por exemplo, a ascensão de governos de direita em diversas partes do mundo, impulsionados pela criação de "bolhas" informacionais. A questão da credibilidade é central, com a internet dando voz a ideias como a da Terra plana ou movimentos antivacina, que antes tinham menor visibilidade.
O maestro ressalta que a internet em si "não é o problema", mas sim uma "solução" e uma "tecnologia maravilhosa". O problema reside em "alguém na internet" que conduz processos de desinformação. Ele identifica as Big Techs como os atores que detêm o controle e manipulam a informação para fins lucrativos.
A regulação das BigTechs é um ponto crítico. Carvalho aponta a "resistência enorme" dessas empresas em sofrer qualquer tipo de regulamentação. Ele critica a omissão do Poder Legislativo, que, segundo ele, é "eleito por esse movimento de bolhas da internet, muito mais à direita", e que defende uma "liberdade de expressão a qualquer tempo", o que considera um equívoco.
Diante da omissão legislativa, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem atuado na questão. O livro de Fabrício Carvalho aborda o julgamento do artigo 19 do Marco Civil da Internet, que estabeleceu a obrigação das bigtechs de removerem conteúdos criminosos sem a necessidade de judicialização prévia.
O conflito entre plataformas como o X (antigo Twitter) e o ministro Alexandre de Moraes é citado como um exemplo da resistência de bigtechs, muitas vezes sem sede no Brasil, em cumprir as determinações legais. Carvalho defende que regulação não é censura, mas sim a aplicação da lei ao ambiente digital, da mesma forma que uma obra de arte que promova o crime seria considerada um crime.
A discussão sobre o impacto da inteligência artificial (IA) também é relevante. Atualmente, mais de 50% do conteúdo na internet é gerado por IA. O maestro expressa preocupação sobre o uso da IA em eleições, com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) já articulando cartilhas sobre o tema. Ele observa que a IA, que poderia ser usada a favor da sociedade, frequentemente serve a quem tem dinheiro para "comprar a verdade".
Essa dinâmica, segundo Carvalho, aprofunda o capitalismo e a manipulação, afetando principalmente as classes mais pobres. Ele questiona o modelo de "uberização" e "plataformização" do trabalho, que leva à perda de proteção social e à narrativa do "empreendedor", sem as garantias de direitos trabalhistas.
Ele exemplifica a "inversão rápida" das coisas com empresas como Airbnb, que não possui propriedades, e Uber, que não tem automóveis, sendo as maiores em seus respectivos setores. Essa realidade, aos 50 anos, o fez perceber que "o mundo tá girando, não tá girando, tá capotando".
A obra de Carvalho busca ser uma reflexão para a classe trabalhadora, que "sempre e em qualquer tempo da história, é vipendiada em função desses movimentos que o capitalismo faz". Ele alerta para as consequências da aceitação do capitalismo de plataforma como solução, como a falta de segurança social para o trabalhador.
O maestro critica a realidade de Mato Grosso, um estado com grande número de bilionários, mas também com muita pobreza e desigualdade. Ele questiona "a que serve essa informação baseado na riqueza e no poder?", e como a internet tem desequilibrado as relações ao estar "na mão do rico".
A educação é apontada como o caminho para combater a desinformação e a manipulação. No entanto, Carvalho faz uma crítica ao modelo de educação cívico-militar, que, segundo ele, é direcionado "pro filho do trabalhador" e ensina "disciplina" e a ideia de que "bandido bom é bandido morto". Ele contrapõe essa abordagem à "educação libertadora" de pedagogos como Paulo Freire e Jean Piaget, que estimula a sensibilidade e o pensamento crítico, geralmente aplicada aos "filhos do rico".
Ele argumenta que a internet, ao dar voz a comportamentos reprováveis como racismo, homofobia e misoginia, não é o problema em si, mas sim o "caminho" pelo qual "alguém está dirigindo isso". A educação, especialmente a "educação pela internet", é vista como uma ferramenta para combater a "desinformação/manipulação".
Carvalho enfatiza que as BigTechs utilizam a internet para se financiar e expandir seus negócios, mas que a questão vai além do comercial, envolvendo interesses ideológicos. Ele reconhece o lado positivo da internet, que "abriu as portas da comunicação para todo mundo", tornando a informação acessível e permitindo que "cada um possa contar o que tá acontecendo".
Contudo, ele destaca a "resistência enorme das bigtechs" em sofrer qualquer tipo de regulamentação, mesmo diante do grande volume de informação sendo tratado e manipulado. A discussão sobre a necessidade de regulação é central, e ele reforça a atuação do STF na ausência do legislativo.
O maestro conclui que o livro busca "pensar um mundo melhor" e é sua "contribuição para uma sociedade mais equilibrada, onde a gente possa no mínimo se respeitar". Ele adianta que, após a tese de doutorado, que também se tornará um livro, pretende lançar outra obra sobre música, explorando "a música e as suas circunstâncias" e o impacto emocional e de consumo que ela gera.






