No dia em que Jair Bolsonaro foi protagonista de um desfile de veículos militares em frente ao Palácio do Planalto, a PEC do voto impresso, motivo de seguidas manifestações golpistas do presidente, foi derrotada pelo plenário da Câmara dos Deputados.
Foram 229 a favor do texto, 218 contra e uma abstenção. Eram necessários ao menos 308 votos dos 513 deputados - 60% - para que a proposta de impressão do voto dado pelo eleitor na urna eletrônica fosse adiante. Ou seja, faltaram 79 votos para que a PEC fosse aprovada. Diante do resultado, ela foi arquivada.
Ao final da votação, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), agradeceu ao plenário pelo "comportamento democrático de um problema que é tratado por muitos com muita particularidade e com muita segurança".
"A democracia do plenário desta Casa deu uma resposta a esse assunto. E na Câmara eu espero que esse assunto esteja definitivamente enterrado" , afirmou.
A abstenção registrada foi do deputado Aécio Neves (PSDB), que, em 2014, pediu auditoria no resultado das eleições após perder por estreita margem para a ex-presidente Dilma Rousseff (PT).
A votação desta terça-feira (10) enterra a proposta que mobilizou a escalada de ataques de Bolsonaro a integrantes do STF (Supremo Tribunal Federal) e do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e que agravou uma crise entre os Poderes. A tensão foi apimentada com a apresentação de blindados das Forças Armadas em Brasília, vista como tentativa de intimidação no dia de votação da PEC do voto impresso.
Desde antes de assumir, Bolsonaro tem alimentado suspeitas contra as urnas eletrônicas, apesar de jamais ter apresentado qualquer indício concreto de fraude nas eleições. Baseado nessas falsas suposições, e em um cenário de queda de popularidade e de maus resultados em pesquisas de intenção de voto, já ameaçou diversas vezes a realização da disputa do ano que vem.
Arthur Lira disse ter ouvido de Bolsonaro o compromisso de que respeitaria o resultado do plenário da Câmara -apesar da desconfiança inclusive de aliados do presidente.
A votação ocorreu horas após um desfile militar patrocinado por Bolsonaro, que reuniu na manhã desta terça cerca de 40 veículos, todos da Marinha, entre blindados, caminhões e jipes.
A parada militar passou ao lado da praça dos Três Poderes, onde estão o Palácio do Planalto (sede do Executivo), o Congresso Nacional (Legislativo) e o Supremo Tribunal Federal (Judiciário).
Interpretado como uma tentativa de demonstração de força do presidente no momento em que aparece acuado e em baixa nas pesquisas, o desfile foi alvo de uma série de críticas do meio político, sendo tratado como mais uma tentativa do Planalto de pressionar outros Poderes e de buscar a politização das Forças Armadas.
Segundo o sistema da pesquisa da Câmara, a última vez em que o plenário rejeitou uma PEC integralmente foi em março de 2017 -a proposta que possibilitava universidades públicas cobrarem por cursos de extensão e de pós-graduação latu sensu. Foram 304 votos a favor da PEC à época, quatro a menos que o mínimo necessário.
Estatísticas oficiais da Casa mostram que nenhuma PEC foi rejeitada em 2018 e 2019. A reportagem pediu à Câmara um levantamento no final da tarde desta terça sobre 2020 e 2021, mas as informações não foram reunidas até a conclusão desta reportagem. Presidente da Câmara de 2016 até janeiro deste ano, o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) disse que não houve nenhuma PEC rejeitada pelo plenário da Câmara em 2020 e 2021.
Nesta terça, apesar da convicção de líderes de que a PEC seria derrotada, dirigentes partidários tiveram de entrar em campo para manter votos contra a proposta após constatarem divisão em diversas bancadas.
Os deputados do PSD, por exemplo, pediram para votar como quisessem após reunião com o presidente da legenda, Gilberto Kassab. Embora Kassab tenha feito apelo para que eles se posicionassem contra a matéria, a bancada estava rachada. Na hora da votação, o PSD orientou seus deputados a votar contra a PEC. Além dele, outros presidentes de partidos atuaram para evitar votos favoráveis à proposta.
O próprio presidente da Câmara, Arthur Lira, só colocou em votação a PEC quando teve a certeza de que seria rejeitada. Para isso, segundo deputados relataram à reportagem, ele próprio atuou para que parlamentares favoráveis ao texto não votassem.
Na avaliação de deputados, a divisão nas bancadas ocorreu porque as cúpulas partidárias demoraram a mobilizar as bases contra a PEC. Aliado a isso, nos últimos dias, principalmente, houve forte pressão de bolsonaristas para que os parlamentares aprovassem a proposta por meio de mensagens no WhatsApp e nas redes sociais.
Muitos deputados acabaram se posicionado publicamente para dar resposta às bases eleitorais e, nesta terça, decidiram não voltar atrás.
Apesar da abstenção na votação, Aécio Neves rejeitou, no início de julho, as suspeitas levantadas por Bolsonaro sobre a eleição presidencial e afirmou que não houve fraude na disputa. "Eu não acredito que tenha havido fraudes nas urnas em 2014, tampouco acredito que nós estejamos fadados a viver eternamente com as urnas eletrônicas de primeira geração", declarou o tucano em nota.
A votação desta terça teve Lira, que é aliado de Bolsonaro, como principal patrocinador. O parlamentar afirma ter obtido do presidente o compromisso de que ele irá cessar os ataques ao sistema eleitoral e a ministros do STF e TSE.
Lira colocou o projeto do voto impresso em análise no plenário mesmo com a proposta tendo sido rejeitada por 23 votos a 11 na comissão especial -passo anterior da tramitação-, o que não é usual.
Seu argumento é o de que o assunto, pela proporção que tomou, precisava de uma decisão mais representativa do universo dos parlamentares.
Nos bastidores, membros das cúpulas dos Poderes negociam um prêmio de consolação ao bolsonarismo, que seria a adoção de uma medida administrativa ampliando o número de urnas eletrônicas que hoje são sorteadas para passarem por teste de integridade -atualmente cerca de 100 de um universo de cerca de 500 mil urnas eletrônicas.
Apesar de Bolsonaro ter prometido aceitar o resultado do plenário, a avaliação de auxiliares palacianos é que o presidente vai continuar insistindo no tema. A derrota, ainda que com uma margem menor do que o previsto inicialmente, deve servir para reforçar o discurso de "vítima do sistema".
O voto impresso serviu para reaglutinar a base bolsonarista, que andava dispersa, com sucessivas crises na CPI da Covid, Judiciário e com a economia patinando. Assim, auxiliares acreditam que não apenas este tema deve continuar nos discursos de Bolsonaro como pode também se tornar uma bandeira de campanha.
Na votação desta terça, deputados se dividiram no microfone contra e a favor da PEC.
"A minha posição, que sempre foi favorável a uma possibilidade maior de auditoria do processo de votação no Brasil, permanece a mesma neste momento. Sou a favor da PEC 135/2019, que contou inclusive com a minha assinatura de apoiamento", disse o deputado Marcel Van Hattem (Novo-RS).
Responsável jurídico pelo pedido de auditoria do resultado das eleições de 2014, quando o tucano Aécio Neves perdeu por uma margem estreita para a petista Dilma Rousseff, o deputado Carlos Sampaio (PSDB-SP) foi à tribuna se posicionar contra a proposta bolsonarista. "Nós não temos mais dúvida de que o sistema é seguro."
Fernanda Melchionna (PSOL-RS), afirmou ser inaceitável haver um debate como este na Câmara dos Deputados. "O debate aqui não é técnico, é político de um governo que perdeu a moral. De um governo que tem que responder por que 14 milhões de brasileiros não têm emprego. Por que o povo paga 40% mais caro no arroz em um país que é produtor de arroz."
O voto em cédula no Brasil, com apurações lentas e conturbadas, que podiam durar dias, vigorou até 1994.
Na eleição municipal de 1996, a urna eletrônica começou a ser implantada nas maiores cidades do país.
Em 2000, o novo sistema estava operando em todo o território nacional, o que levou as cédulas a serem reservadas apenas para localidades em que o aparelho apresentasse defeito.
Desde então, apesar de não haver nenhum indicativo ou suspeita concreta de fraude na votação eletrônica, o Congresso Nacional já aprovou em três ocasiões leis tentando implantar não a volta das cédulas, mas a impressão do voto dado na urna eletrônica -leis 10.408/2002, 12.034/2009 e 13.165/2015.
A primeira foi revogada pelo próprio Congresso em 2003 após o fiasco do ano anterior.
A segunda foi declarada inconstitucional pelo STF sob os argumentos de risco à garantia constitucional do sigilo do voto e violação aos princípios de economia e eficiência na gestão do dinheiro público.
Segundo estimativas, o custo para implantar o voto impresso em todo o país deve superar a casa dos R$ 2 bilhões.
A terceira lei também foi barrada pelo Supremo, sob o mesmo argumento: inconstitucionalidade.
A PEC rejeitada previa o registro impresso do voto em urnas eletrônicas. Na votação, seriam emitidas cédulas físicas conferíveis pelo eleitor, depositadas, automaticamente e sem contato manual, em urnas indevassáveis, para fins de auditoria.
Ainda na segunda (9), Bolsonaro começou a esboçar um discurso de derrota. Ele atribuiu a uma interferência do ministro Luís Roberto Barroso, presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), as chances de a proposta não vingar na Câmara.
"Se não tivermos uma negociação antes, um acordo, vai ser derrotada a proposta. Porque o ministro Barroso apavorou alguns parlamentares, e tem parlamentar que deve alguma coisa na Justiça, deve no Supremo. Então o Barroso apavorou", disse o presidente, em entrevista a uma rádio bolsonarista.
Depois, disse a apoiadores que tem "outros mecanismos" para "colaborar para que não haja suspeita".
Na mesma segunda, ministros do TSE encaminharam ao STF uma notícia-crime para investigar o presidente Jair Bolsonaro e o deputado federal Filipe Barros (PSL-PR) por suspeita de divulgação de dados sigilosos contidos no inquérito da Polícia Federal que apura um ataque hacker sofrido pela corte em 2018.
Bolsonaro fez a publicação após afirmar em programa da rádio Jovem Pan que comprovaria a fraude nas urnas eletrônicas. Um dia depois, a corte eleitoral desmentiu o presidente e disse que o episódio, que ocorreu em 2018, "embora objeto de inquérito sigiloso, não se trata de informação nova".
Segundo o tribunal, "o acesso indevido, objeto de investigação, não representou qualquer risco à integridade das eleições de 2018. Isso porque o código-fonte dos programas utilizados passa por sucessivas verificações e testes, aptos a identificar qualquer alteração ou manipulação. Nada de anormal ocorreu".