Sete em cada dez médicos brasileiros admitem não se sentir preparados para estar na linha de frente do combate à Covid-19. Esse é um dos dados de pesquisa recente da Associação Paulista de Medicina (APM) que entrevistou 1.984 profissionais de todo o país entre 25 de junho e 2 de julho. Segundo o levantamento, somente 28% dos médicos se dizem plenamente capacitados para atender casos de Covid-19, em qualquer que seja a fase do tratamento. Já 72% admitem não ter conhecimentos aprofundados e dizem que estão na linha de frente por uma questão humanitária.
Ser um profissional de saúde e estar na linha de frente tem sido uma das atividades mais difíceis dos últimos meses, desde que a pandemia foi decretada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em março. Estar em contato direto com uma doença mortal, sobre a qual ainda pouco se sabe, exige doses imensas de coragem por conta do alto risco de infecção dos profissionais. Segundo o Conselho Regional de Medicina de Mato Grosso, 210 médicos já foram infectados no estado, sendo 3 mortes. Em relação aos profissionais de enfermagem, são 499 infectados e 11 mortes.
Vivian Rieira Camargo e Silva é técnica de enfermagem em Cuiabá e diz que nunca imaginou, ao longo dos 16 anos de trabalho como servidora pública, viver algo semelhante ao que está vivendo agora. “Achava que isso só acontecia nos filmes”, afirma.
Segundo ela, o medo 24 horas por dia é unânime entre os profissionais de enfermagem. “Eu vi, nesse período, diversos colegas ficarem doentes física e emocionalmente, vi uma enorme comoção entre nós, um ajudando o outro com remédio, comida, carinho e palavras motivadoras. Vi uma equipe rezar e chorar pela perda de colegas, vi muitos não dormirem pensando que pudessem ser os próximos a estarem enlutados, vi também o quanto somos impotentes quando se trata do seu ente estar sob os seus cuidados e ter que deixar esse mesmo ente sob os cuidados do seu colega. Estamos nos apoiando uns nos outros, tentando buscar o equilíbrio, mantendo a fé mantendo pensamentos positivos e torcendo pra que tudo isso acabe e que possamos, pelo menos, tentar nos reinventar de um jeito talvez diferente”.
Empenhados no combate à Covid-19 desde o início da pandemia, os médicos acreditam que a doença está longe de ser amenizada, de acordo com a pesquisa da APM. Prova disso é que 89% dos profissionais creem numa segunda onda de contágio. Desses, porém, 42,3% acreditam que ela será menos grave.
Formada há dois meses, a médica Fernanda Bacarin, de 24 anos, atua como clínica geral em dois locais da rede pública e está na linha de frente do combate à Covid-19. A felicidade em poder ajudar em um momento tão delicado pelo qual passa o planeta se mistura à angústia por não saber o que está por vir e por quanto tempo essa pandemia irá durar.
“A principal lição que tiro dessa experiência é a humildade. A pandemia mostrou como somos pequenos. Não importa o quanto a medicina já evoluiu e quantos recursos tecnológicos temos, o ser humano é frágil”, diz.
Atuando na UPA Morada do Ouro e também na rede particular de saúde, o médico Werley Peres descreveu os dias atuais como "intensos e muito difíceis". "O desgaste psicológico e físico é muito grande. Enfermeiros e médicos estão com estafa psicológica, por medo da doença, por ver os colegas tombarem e morrerem e por não conseguir leito para quem está mal. Chegam muitas pessoas ao mesmo tempo e não temos como resolver, não temos para onde mandar nem o que fazer. A sobrecarga não está só no sistema de saúde, mas na mente dos trabalhadores que estão como gigantes lutando contra um inimigo invisível. A população vulnerável entra no pronto atendimento buscando vida, tendo aquela equipe médica como a única tábua de salvação".
Ele lembra que sofrer essa pressão uma hora por dia, durante um plantão é uma coisa. No entanto, os profissionais da linha de frente enfrentam esse quadro 12 horas por dia, todos os plantões da semana. "Isso é algo que se não tiver uma estrutura muito forte, fica abalado".
Na opinião de Vivian, esse momento de incerteza e angústias veio para provocar uma reflexão no ser humano sobre a condução da própria história. “Eu estava em um momento da minha vida que eu só pensava em trabalho e crescer profissionalmente, principalmente como fonoaudióloga, estava esquecendo de pequenas coisas como sentar e brincar com meus filhos, em ajudar nas tarefas da escola e confesso que isso foi realmente diferente pra mim, que sou mãe de 3. A carga horária de trabalho não me permitia acompanhar a rotina deles mais de perto”.
Viver o presente
O futuro incerto traz angústia e medo, mas traz também algumas certezas como a importância de viver o presente. “A linha de chegada não importa. Vivemos sempre pensando à frente, no que queremos conquistar, e nos esquecemos que a vida é no hoje. O futuro é só uma ideia que pode nunca chegar. Por isso, temos que viver o presente e sermos gratos a cada dia por tudo o que temos naquele momento”, aconselha Fernanda.
“Hoje não podemos mais fazer planos a longo prazo, apenas sobreviver porque há várias pessoas para nós atendermos que o que nos resta é passar para eles que tudo vai acabar bem, até porque é isso realmente que nós queremos”, ressalta Vivian.
Coração de mãe
A psicóloga e educadora parental Gina Coelho vive dias de preocupação e angústia como todos os familiares de pessoas que estão trabalhando na linha de frente do combate ao novo coronavírus. Ela é mãe de Fernanda, a médica citada nessa reportagem. Desde que assumiu as funções, Fernanda saiu de casa porque a mãe é asmática e está no grupo de risco.
“Não estamos mais convivendo como antes. Quando a gente se vê é de longe, a gente se fala por alguns minutos e mantém contato por mensagens, telefonemas e videochamadas. É isso que nos fortalece, felizmente temos essa ferramenta que permite lidarmos melhor com essa saudade física, mas não é fácil. É bem difícil suportar a saudade e a preocupação, é uma luta diária, a gente vive pelas 24 horas.
Como mãe eu sinto um misto de emoção. A formatura e o trabalho envolveram muita felicidade, orgulho de ter uma filha tão dedicada mas, ao mesmo tempo em que ela assumiu o cargo, veio aquele medo, a ansiedade, a preocupação com ela adoecer física e emocionalmente porque é uma carga muito pesada, é muito difícil estar na linha de frente.
Passei por várias fases ao longo deste tempo. No começo eu me sentia extremamente preocupada e me apegava às preces. Aos poucos fui controlando os pensamentos disfuncionais, negativos e automáticos e colocando mais razão em tudo, questionando mais a realidade. Essa foi a profissão que ela escolheu, ajudar e cuidar das pessoas. Eu sigo trabalhando meu mental e emocional no dia a dia para lidar melhor com a situação.
Rezo para que ela seja um instrumento de humanidade em meio a tanto sofrimento que aquele ambiente tem com tantas perdas. Procuro fazê-la entender que ela está fazendo o melhor, ela é muito corajosa e muito guerreira, comprometida com a profissão e com um grande senso de humanidade. Ela escolheu estar na linha de frente ajudando as pessoas e as famílias das pessoas e isso me traz muito orgulho e conforto, aquieta meu coração quando me preocupo. Sei que ela está fazendo bem para as pessoas.
Ser psicóloga me ajuda muito, as técnicas me fazem entender os pensamentos e me trazem para a realidade. Olho os pontos fortes e positivos dessa situação porque eles existem, apesar do caos. Ser psicóloga me permite ver um oásis em meio ao caos.
Acho que algumas coisas vão mudar após a pandemia, especialmente em relação à educação, ao trabalho remoto e a viver com menos, mas acredito que a mudança real, uma transformação como ser humano, não será algo geral na humanidade. Pessoas que saírem transformadas é porque já estavam nesse processo. Quem não estava, vai ficar na mesma limitação e mediocridade”.
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