A noite da última terça-feira (16) testemunhou, em Brasília, um espetáculo lamentável de autodeterminação para a impunidade. A Câmara dos Deputados, em um gesto de audácia que beira a insolência, aprovou em dois turnos a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 3/2021, que, sob o eufemismo de "blindagem", consagra um regime de privilégios que coloca uma casta política acima da lei. A análise crítica é imperativa para desvelar a excrescência jurídica e moral por trás dessa manobra.
Com 353 votos favoráveis no primeiro turno e 344 no segundo – números que deveriam envergonhar cada signatário – a PEC avança para o Senado, carregando consigo o peso de um retrocesso civilizatório. Em tempos de discursos vazios sobre moralidade e ética, o Congresso Nacional, com a ligeireza de um ilusionista, trata de desmantelar o pouco que resta de escrutínio sobre seus membros.
A primeira aberração dessa "carta de alforria da bandidagem" é a exigência de autorização prévia para ações penais. Imagine, caro leitor, a Polícia, o MP ou o Judiciário pedindo permissão aos comparsas de um assaltante para que a polícia o investigue? É precisamente essa a lógica pervertida que a PEC institui. Qualquer abertura de ação penal contra um deputado ou senador dependerá, a partir de agora, de uma benevolente autorização da maioria absoluta de seus pares, concedida em votação secreta e com um prazo de até 90 dias. Ora, 90 dias não são apenas um lapso temporal; são 90 dias para sumir com provas, combinar versões e blindar de vez qualquer vestígio de culpa. O sigilo do voto, nesse contexto, não protege a consciência parlamentar, mas sim a conivência e a covardia.
E, como se não bastasse tamanha audácia, a PEC estende o manto da intocabilidade ao foro privilegiado para presidentes de partidos. Aqueles que, muitas vezes, não detêm um mandato eletivo direto, mas exercem poder considerável nos bastidores da política, agora também terão o privilégio de serem julgados pela Suprema Corte. Em um país onde a igualdade perante a lei é um mantra constitucional, essa medida apenas alarga o abismo entre o cidadão comum e essa "desavergonhada nobreza" política, solidificando a ideia de que a justiça é um artigo de luxo, disponível apenas para alguns.
A cereja do bolo da impunidade, no entanto, reside na votação secreta para decisões sobre prisões e na possibilidade de suspensão de prisão por maioria simples. Mesmo em casos de flagrante crime inafiançável – ou seja, o político é pego em plena ação criminosa, com a "mão na massa" – a Casa Legislativa terá o "prazer" de deliberar, em até 24 horas, se o colega deve ou não ser mantido atrás das grades. Não é um escárnio? A simples maioria dos presentes na sessão – e não do total de parlamentares – pode, em um estalar de dedos, anular uma decisão judicial e resgatar o transgressor. O deputado Claudio Cajado (PP-BA), relator da PEC, com uma ironia que só a cegueira política pode produzir, defendeu que o voto secreto "nunca deu problema". Ora, problema para quem, deputado? Para a sociedade que clama por transparência ou para a casta que se esconde na escuridão dos conchavos?
Quando o relator defende que a medida não é uma "licença para abusos", mas um "escudo protetivo", a ironia se desfaz em cinismo. "Isso aqui não é uma licença para abusos do exercício do mandato, é um escudo protetivo da defesa do parlamentar, da soberania do voto e, acima de tudo, do respeito à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal", declarou. Que escudo é esse que protege a corrupção, o desvio de recursos públicos e, pasmem, até crimes comuns? É um escudo da vergonha, que defende a imunidade e não a dignidade do mandato.
A medida do prévio licenciamento para processos criminais, desde a expedição do diploma, é um retorno ao obscurantismo. Significa que, a partir do instante em que o diploma é expedido, o parlamentar já adquire uma imunidade que o afasta dos rigores da lei comum, dificultando qualquer investigação séria antes mesmo que o sujeito pise no Congresso. É uma pré-blindagem, uma espécie de "selo de intocável" antes mesmo de o mandato começar de fato.
Não se trata de proteger a prerrogativa parlamentar, mas de criar uma "impunidade ampla, geral e irrestrita", como bem aponta a crítica mais lúcida. É uma usurpação de competências do Judiciário, uma clara interferência em sua independência, e um recado inequívoco de que, para essa casta, a lei é um detalhe, não um princípio.
A indignação do deputado Ivan Valente (PSOL-SP) é a indignação que deveria ser de todos nós: "Isso aqui é uma desmoralização do Parlamento brasileiro. Está voltando o voto secreto e a forma como vamos dar ao Poder Legislativo de anular o Judiciário, chantagear o Executivo e torná-lo o Poder, por excelência, no semipresidencialismo". Sua colega Sâmia Bomfim complementa: "isso aqui é praticamente a Câmara secreta, porque o orçamento é secreto, o voto, querem que seja secreto. Só o que não é secreto é a falta de vergonha na cara". E não há como discordar.
O presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, Otto Alencar (PSD-BA), demonstra a repulsa que ainda habita alguns setores: "A repulsa à PEC da Blindagem está estampada nos olhos surpresos do povo, mas a Câmara dos Deputados se esforça a não enxergar. Tenho posição contrária". Que essa repulsa se traduza em uma barreira intransponível no Senado.
A aprovação da PEC da Blindagem não é um incidente isolado; é um sintoma alarmante de uma patologia política que se aprofunda. É a institucionalização da desfaçatez, a anistia prévia para os maus feitos, e o atestado de óbito para a tão sonhada igualdade perante a lei. A população brasileira não pode se calar diante dessa bandalheira desavergonhada. É preciso que a sociedade, a imprensa livre e todos aqueles que ainda acreditam nos princípios democráticos se levantem e exijam o que lhes é de direito: uma justiça que seja cega para o poder, e não complacente com ele.






