Imagine uma festa onde a conta chega, mas a caneta para dividir os custos treme na mão de quem organiza. De um lado, os que beberam água. Do outro, os que pediram o champanhe mais caro do cardápio. A política fiscal brasileira, hoje, se parece muito com essa cena. E no centro do palco, o governo Lula acende um holofote incômodo sobre a sigla que assombra os corredores do poder e da Faria Lima: os "BBB" – Big Banks, Big Bets, Big Fortunes.
Vamos direto ao ponto: a discussão sobre taxar os "muito ricos" no Brasil não é um mero ajuste de planilha, é uma batalha de vida ou morte sobre o projeto de país que queremos. De um lado, o governo Lula, com uma retórica que resgata a bandeira da justiça social, saca a caneta para mirar nos chamados BBBs – numa linguagem mais didática, bancos, bilionários e casas de apostas. Do outro, uma muralha formada pela extrema direita e pelo pragmático Centrão (a direita tradicional), que enxerga nessa movimentação um veneno (comunista) para o "mercado".
É um roteiro clássico, mas com tempero contemporâneo. A proposta de Lula, em sua essência, é simples de entender: fazer com que o topo da pirâmide, aquele 1% que concentra uma fatia desproporcional da riqueza, contribua mais para o bolo. A ideia é usar essa grana extra para irrigar programas sociais e, ao mesmo tempo, tentar aliviar o fardo tributário que esmaga a classe média e os mais pobres. Trata-se de uma escolha ideológica clara, um aceno à sua base histórica que enxerga o Estado como um motor de redistribuição de renda, e não apenas um gerente de contas.
A lógica da centro-esquerda se ancora em um diagnóstico cru: o sistema tributário brasileiro é uma espécie de Robin Hood às avessas. Ele tira dos pobres para manter os privilégios dos ricos, com isenções sobre lucros e dividendos e uma carga pesada sobre o consumo – o que penaliza justamente quem gasta a maior parte da sua renda em itens básicos. Mudar essa equação, portanto, seria mais do que uma necessidade fiscal; seria um imperativo moral.
Contudo, do outro lado do balcão, a reação é visceral. Para os defensores da desregulamentação e dos impostos baixos, a narrativa é outra. Aumentar a taxação dos mais ricos seria o equivalente a espantar investimentos, punir o sucesso e criar um ambiente de negócios hostil. O argumento, repetido como um mantra, é que o capital é covarde e migra para onde é mais bem tratado. Nesse universo, o Estado deve ser mínimo, a iniciativa privada é a locomotiva do progresso e qualquer tentativa de intervenção soa como heresia comunista.
O Centrão, com seu faro apurado para o poder, joga nesse tabuleiro com maestria. Sem um compromisso ideológico rígido, seus membros negociam apoio em troca de nacos do governo, emendas e, claro, a manutenção de um sistema que favorece seus financiadores – muitos deles, parte do tal 1%. Eles funcionam como o pêndulo do poder, ora inclinando-se para um lado, ora para o outro, sempre de olho na própria sobrevivência política e nos interesses dos grandes grupos empresariais que representam. O discurso público pode até variar, mas a prática é quase sempre a mesma: proteger o status quo.
O que estamos assistindo, portanto, é a materialização de duas visões de mundo irreconciliáveis. Uma que acredita na redução da desigualdade como pré-condição para o desenvolvimento e outra que aposta no "laissez-faire", na crença de que a prosperidade do topo, por gravidade, chegará a todos.
É o clássico dilema do cobertor curto. Puxar o tecido para cobrir os pés gelados dos desvalidos significa, quase sempre, descobrir os ombros de quem, segundo o jargão do mercado, "puxa a carroça" da economia. O embate, portanto, vai muito além de alíquotas e planilhas de Excel. É uma colisão de visões de mundo.
O governo Lula aposta que um Estado mais forte, financiado por uma elite mais contributiva, pode criar uma sociedade mais justa e um mercado consumidor mais pujante, beneficiando a todos no longo prazo. A oposição aposta que um Estado mais enxuto, que "atrapalhe menos" os negócios, libera uma energia empreendedora capaz de gerar uma prosperidade que, por gravidade, chegaria a todos.
No fim do dia, a briga de gigantes em Brasília respinga no seu prato. A escolha entre taxar o iate ou o pão francês, entre onerar o dividendo bilionário ou o salário do trabalhador, define não apenas as contas do governo, mas o tipo de país que estamos construindo. A questão que fica não é se o Brasil precisa de mais dinheiro, mas qual Brasil queremos construir com ele. A resposta está sendo disputada, centavo por centavo, em uma batalha ideológica que mal começou.