No palco do Congresso Nacional, duas propostas legislativas, aparentemente distintas, revelam uma perigosa sinfonia cujo resultado é a erosão do Estado Democrático de Direito. E revelam a desfaçatez sem limites de partidos políticos que se arvoram paladinos da moralidade com discursos e narrativas insustentáveis diante da imoralidade de seus atos.
De um lado, a tentativa de anistiar os responsáveis pelos atos de 8 de janeiro; do outro, a chamada "PEC da Blindagem", que busca entrincheirar parlamentares contra investigações. Juntas, elas compõem um manifesto pela impunidade. Do ponto de vista jurídico, a anistia para crimes que atentam contra a própria estrutura democrática é um paradoxo insolúvel. Utiliza-se o instrumental da lei para legitimar a sua violação.
A Constituição de 1988, erigida sobre as cinzas de um regime de exceção, consagra a defesa da democracia como cláusula pétrea. Perdoar aqueles que buscaram sua ruptura é, em essência, um ato de autofagia institucional, um precedente nefasto.
Paralelamente, a "PEC das Prerrogativas" ou "da Blindagem" fere de morte o princípio da separação dos Poderes e da isonomia. Ao condicionar a ação do Judiciário e do Ministério Público à autorização prévia de uma Casa Legislativa para investigar seus próprios membros, cria-se um tribunal de exceção. O Legislativo, que deveria fiscalizar, passa a se autofiscalizar, instaurando um conflito de interesses que corrói a República. Prerrogativas existem para garantir o livre exercício do mandato, não para conferir um salvo-conduto para a prática de crimes.
Moralmente, a mensagem é devastadora. Sinaliza-se à sociedade que existem duas classes de cidadãos: os comuns, sujeitos ao rigor da lei, e os politicamente conectados, cujos atos, por mais graves que sejam, podem ser convenientemente esquecidos ou imunizados. Anistia e blindagem são o antônimo de accountability.
É a consagração do privilégio em detrimento da responsabilidade. Essa disparidade mina a confiança pública nas instituições, fomentando um cinismo que é o terreno fértil para o populismo e para novas aventuras antidemocráticas. Quando a lei não é igual para todos, ela deixa de ser lei para se tornar apenas um instrumento de poder nas mãos de quem o detém.
Não sejamos ingênuos. Essas propostas não são coincidências. Elas formam um projeto coordenado para garantir a sobrevivência política de um grupo, consolidando um poder que não se submete ao escrutínio da Justiça. A anistia limpa o passado, absolvendo a base que deu suporte a ataques institucionais. A blindagem garante o futuro, assegurando que os líderes não respondam por seus atos ilícitos. É um círculo vicioso que se retroalimenta.
A defesa da democracia exige uma recusa veemente a este pacto. Cabe à sociedade civil, à imprensa livre e às instituições sãs rejeitarem essa tentativa de transformar o Congresso Nacional em uma fortaleza de impunidade. A verdadeira prerrogativa, afinal, é a de servir à nação sob o império da lei.
É imperativo nominar os arquitetos desse assalto institucional. A extrema direita, capitaneada pelo Partido Liberal (PL), atua como vanguarda explícita na defesa da anistia, buscando proteger sua base e seus líderes. Contudo, essa agenda não prosperaria sem o apoio decisivo de legendas da direita tradicional e, principalmente, do Centrão. Partidos como Progressistas (PP), Republicanos e União Brasil, ao lado de setores do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), formam um bloco pragmático que, em troca de poder e verbas, oferece os votos necessários para fazer avançar pautas que corroem os freios e contrapesos da República. Essa aliança fisiológica cria o ambiente perfeito para que a impunidade se torne moeda de troca política.
Diante deste cenário, cabe um chamado à racionalidade do eleitor. É fundamental compreender que as narrativas de "pacificação nacional" ou "defesa das prerrogativas" são, muitas vezes, apenas uma fachada para interesses corporativistas e para a manutenção de um poder que se recusa a prestar contas. Submeter-se à cilada dessas falsas narrativas é ser cúmplice passivo na desconstrução do princípio mais básico da justiça: a igualdade de todos perante a lei. A democracia exige um eleitorado vigilante, que saiba diferenciar o discurso público da real intenção por trás dele e que não entregue um cheque em branco a quem claramente trabalha para dinamitar os alicerces da nossa nação.