BLOG DO MAURO Segunda-feira, 29 de Setembro de 2025, 07:24 - A | A

Segunda-feira, 29 de Setembro de 2025, 07h:24 - A | A

DOIS MUNDOS EM UM PALCO

O grito do Sul Global e o eco do império na ONU

Mauro Camargo

Ricardo Stuckert/PR

Lula na ONU

 Lula faz discurso histórico na 80a Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York

Setembro em Nova York. A cidade pulsa em seu ritmo inconfundível, uma sinfonia de sirenes, idiomas e ambições. Mas dentro do austero edifício de vidro e mármore da Primeira Avenida, o tempo parece correr em outra cadência. Ali, no grande salão da Assembleia Geral das Nações Unidas, o murmúrio poliglota dos diplomatas carrega o peso de um mundo em convulsão. É um ritual que se repete desde 1947, uma tradição diplomática que confere ao Brasil a honra e o fardo de ser a primeira nação a discursar após as formalidades de abertura. Em 2025, contudo, o ritual não foi apenas protocolo. Foi um sismo.

Nunca a expectativa foi tão palpável. O ar estava denso, carregado não apenas com a formalidade da 80ª Assembleia, mas com a ansiedade de um planeta que se olha no espelho e não gosta do que vê. Um genocídio transmitido quase em tempo real para as telas de nossos celulares, um colapso climático que bate à porta com a fúria de incêndios e inundações, e uma desigualdade tão obscena que desafia a própria noção de humanidade compartilhada. Neste cenário de fraturas expostas, a voz que emanaria do púlpito brasileiro não seria apenas mais uma. Seria um diagnóstico, uma confrontação e, talvez, um vislumbre de um caminho alternativo.

Quando Luiz Inácio Lula da Silva se aproximou do microfone, não era apenas um homem que falava. Era a personificação de uma história de resiliência, a voz de um Sul Global que se recusa a ser mero espectador de um destino traçado por outros. E, em contraponto, aguardando sua vez, estava Donald Trump, o anfitrião, o epítome de uma outra visão de mundo, uma que mede o sucesso em torres de aço e balanças comerciais favoráveis, e que vê a cooperação como um jogo de soma zero. Naquele dia, na mesma tribuna sagrada, dois mundos iriam colidir. Não em um debate, mas em monólogos que, juntos, pintariam o retrato de nossa era cindida. O que se seguiu não foi apenas um contraste de estilos, mas o desvelar de duas visões irreconciliáveis para o futuro da civilização. O discurso de Lula foi um divisor de águas; o de Trump, a reafirmação de uma maré que insiste em não recuar.

A bússola moral: a reafirmação humanista de Lula

Havia uma aspereza na voz de Lula, a pátina do tempo e das batalhas travadas. Mas havia, acima de tudo, uma clareza cortante. Seis vezes, durante seu pronunciamento, o silêncio protocolar do salão foi quebrado por aplausos espontâneos, uma rara manifestação de catarse em um ambiente acostumado à contenção. O que ele ofereceu não foi um plano mirabolante, mas uma proposta que visava desarmar a própria lógica imperial que há séculos dita as regras do jogo. Ele falou de um novo "excepcionalismo", não o tipo que justifica invasões em busca de armas que não existem, mas um excepcionalismo latino-americano, forjado na convicção radical de que os povos têm um direito inalienável à paz, à justiça e à soberania.

O multilateralismo como trincheira da civilização

O ponto de partida de Lula foi um diagnóstico sombrio, porém acurado, do nosso tempo: a "consolidação de uma desordem internacional". Com essas palavras, ele deu nome ao fantasma que assombra os corredores da ONU: a erosão de sua própria autoridade. Ele atacou frontalmente o uso de sanções arbitrárias e intervenções unilaterais como ferramentas de política externa, uma crítica velada, mas inequívoca, à conduta dos Estados Unidos e outras potências. Para Lula, a política do poder, a lei do mais forte, estava substituindo o direito internacional, e a ONU, paralisada por vetos e interesses geopolíticos, corria o risco de se tornar uma relíquia irrelevante.

Sua defesa do multilateralismo não foi um apelo nostálgico a um passado idealizado. Foi um chamado pragmático e urgente. Em um século XXI que se desenha multipolar, a paz, argumentou ele, não virá da hegemonia de um único poder, mas de um sistema robusto de regras compartilhadas e respeito mútuo. Democracias sólidas, afirmou, não se sustentam apenas com eleições periódicas, mas com a garantia de direitos elementares e a redução das abissais desigualdades que corroem o tecido social. Era um lembrete de que a Carta da ONU não é um documento decorativo, mas um contrato social para a humanidade.

A democracia que sangra e resiste

Em um dos momentos mais potentes de seu discurso, Lula trouxe o Brasil para o centro do palco global, não como um problema, mas como um estudo de caso sobre a fragilidade e a resiliência da democracia. Ao fazer uma referência histórica e direta ao julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro pelo Supremo Tribunal Federal por tentativa de golpe de Estado, ele universalizou a experiência brasileira. A frase "não há pacificação com impunidade" ecoou para além das fronteiras do Brasil, servindo como um alerta a todas as nações que flertam com o autoritarismo.

Foi um ato de coragem diplomática. Em vez de varrer os traumas recentes para debaixo do tapete, ele os expôs como uma ferida em processo de cicatrização, um testemunho de que a democracia brasileira, embora testada até seu limite, é "inegociável". Essa declaração transformou a crise interna do Brasil em um símbolo da luta global contra as forças antidemocráticas, conectando o 8 de janeiro em Brasília ao 6 de janeiro em Washington, e a tantos outros assaltos à ordem constitucional ao redor do mundo. Era o Brasil dizendo ao mundo: nós olhamos o abismo de perto e decidimos recuar, e essa lição nos pertence, mas também serve a todos vocês.

A única guerra legítima

Longe da abstração geopolítica, Lula ancorou seu discurso na realidade mais visceral da experiência humana: a fome. "A única guerra legítima", proclamou ele, "é aquela travada contra a fome e a pobreza". Nesta frase simples e radical, ele desnudou a imoralidade de um mundo que gasta trilhões em armamentos enquanto mais de 800 milhões de pessoas vão para a cama com fome. Ao mencionar que o Brasil, sob sua gestão anterior e novamente agora, havia saído do Mapa da Fome, ele não estava apenas se vangloriando de uma política pública bem-sucedida. Ele estava oferecendo um modelo, uma prova de conceito de que a miséria não é uma fatalidade do destino, mas um projeto político que pode ser revertido por outro projeto político.

Ele expandiu essa visão para criticar a desigualdade de gênero e a forma desumana como as crises globais são frequentemente debitadas na conta dos migrantes, transformados em bodes expiatórios para problemas sistêmicos. Era um apelo humanista que contrastava brutalmente com a retórica da construção de muros e da securitização das fronteiras.

O leviatã digital e a defesa da soberania

Mostrando uma sintonia fina com os dilemas do século XXI, Lula não se limitou aos temas clássicos da diplomacia. Ele mirou nos novos centros de poder: as big techs. Reconheceu os perigos representados por monopólios de dados, pela desinformação em massa e pela lógica predatória dos algoritmos. No entanto, em vez de uma condenação ludita, ele apontou um caminho de regulação e soberania digital. Mencionou, com orgulho, os avanços do Brasil na proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital, especialmente no combate a um fenômeno perverso como a "adultização precoce" impulsionada pelas redes sociais. Era o estadista entendendo que o novo campo de batalha pela dignidade e pela democracia também se trava no mundo virtual.

O grito por Gaza e a coragem da palavra

Talvez o ponto de maior tensão e firmeza de seu discurso tenha sido sua condenação inequívoca ao que acontece em Gaza. Sem meias palavras, ele chamou a tragédia pelo nome que muitos evitam: genocídio. Fez questão de separar as coisas, afirmando que as ações terroristas do Hamas são "indefensáveis", mas que, em resposta, "nada justifica o genocídio em curso, que ameaça a existência do povo palestino". Foi uma declaração que rasgou o véu da hipocrisia diplomática. Ao pedir o reconhecimento pleno da Palestina como um Estado-membro da comunidade internacional, Lula não estava apenas repetindo uma posição histórica do Brasil; ele estava exigindo que o mundo aplicasse a si mesmo os princípios que tanto prega.

Uma nova arquitetura global

O discurso de Lula não foi apenas crítico; foi propositivo. Ele delineou os contornos de um novo pacto global: rever prioridades, diminuindo os gastos militares para ampliar os investimentos em inclusão social; aliviar o fardo insustentável da dívida externa que sufoca os países mais pobres; e, numa proposta ousada, implementar uma tributação global para os super-ricos, uma ideia que vem ganhando tração entre economistas, mas que raramente é defendida com tal veemência do púlpito mais importante do mundo.

Finalmente, ao endossar a criação de um novo órgão global para a ação climática, diretamente vinculado à Assembleia Geral – e não ao Conselho de Segurança, onde o poder de veto pode paralisar qualquer avanço –, ele mirou no coração da governança global. A menção à COP30, a ser realizada na Amazônia brasileira, não foi um convite protocolar, mas um desafio: venham ver de perto a realidade e testar a seriedade de seus próprios compromissos ambientais.

O discurso de Lula, em sua totalidade, foi uma peça de oratória que transcendeu a diplomacia. Foi a voz da América Latina, sim, mas também a voz da África, da Ásia, de todos os povos que sofrem sob as botas do imperialismo e a ganância das oligarquias. Foi um clamor por respeito, por justiça e por um lugar à mesa onde as decisões são tomadas.

Eco do império: o monólogo de Trump

Logo após a ovação a Lula, o palco mudou. O tom mudou. A própria atmosfera do salão pareceu se alterar. Quando Donald Trump, o filho pródigo dos reality shows que se tornou presidente, tomou a palavra, o mundo que Lula descrevera – interconectado, multipolar, clamando por solidariedade – desapareceu. Em seu lugar, surgiu um universo paralelo, uma "era de ouro" americana, impermeável às crises que afligem o resto da humanidade. O discurso de Trump não foi um diálogo com o mundo, mas um monólogo para sua base, um show de vaidades que encarnou a velha arrogância imperial com uma roupagem de populismo nacionalista.

América como uma ilha de prosperidade

Trump iniciou com uma torrente de autoelogios. Pintou um quadro de uma América economicamente pujante e segura, uma nação que, sob sua liderança, teria alcançado uma "era de ouro". O sucesso de sua política migratória, segundo ele, havia "parado completamente" a entrada irregular no país – uma afirmação que ignora a complexidade do fenômeno e a realidade nas fronteiras. Seu discurso era hermeticamente fechado, uma fortaleza retórica que não permitia a entrada de dados inconvenientes como o aumento da desigualdade, a polarização social ou as crises internas que marcam a sociedade americana. Era um discurso para consumo doméstico, projetado na maior tela do mundo.

A ONU como inimiga da ação

Se Lula buscou revitalizar a ONU, Trump a tratou com um desprezo mal disfarçado. Para ele, a organização é uma entidade disfuncional, um clube de burocratas que não cumpre seu potencial, não resolve conflitos e se especializou em produzir "palavras vazias" em cartas e resoluções sem efeito prático. "A ONU precisa de ação efetiva", declarou, ecoando uma crítica que, embora possa ter um fundo de verdade, em sua boca soava não como um apelo por reforma, mas como uma justificativa para a irrelevância da diplomacia multilateral. A ironia suprema foi sua menção ao "fim de sete guerras em sete meses" durante sua administração, um feito que ele se orgulhou de ter alcançado "sem apoio da ONU", como se a ação unilateral fosse uma virtude, e não a própria causa da "desordem internacional" que Lula havia denunciado minutos antes.

Ataque como melhor defesa

Em um dos momentos mais bizarros e reveladores, Trump mirou diretamente no Brasil. Acusou o governo de Lula de "tentar interferir nos direitos e liberdades de cidadãos americanos por meio de censura, repressão e instrumentalização do sistema judicial". A acusação, vaga e sem provas, era um espelho distorcido das críticas que ele mesmo enfrenta em seu país. Parecia uma manobra calculada para agradar sua base de extrema-direita, que vê em figuras como Lula um inimigo ideológico, e para deslegitimar a liderança ascendente do Brasil no Sul Global. A menção a um "breve encontro cordial" e a uma futura reunião parecia um adendo bizarro, uma tentativa de manter uma porta entreaberta enquanto jogava uma bomba retórica pela janela. Era a diplomacia do caos em sua forma mais pura.

O evangelho da soberania e a heresia do clima

O cerne da mensagem de Trump foi a defesa intransigente da soberania nacional, um conceito que, em sua interpretação, se aproxima perigosamente do isolacionismo. Ele apelou por ação coletiva contra ameaças como guerras e migração descontrolada, mas sua solução parecia ser sempre a mesma: cada nação por si, com a América liderando pelo exemplo de sua própria força.

Suas críticas às políticas de energia verde foram outro ponto de contraste direto com Lula. Enquanto o brasileiro via na transição energética uma oportunidade e uma necessidade existencial, Trump a retratou como um fardo econômico e uma ameaça à segurança energética. Advertiu a Europa de que sofreria "consequências graves" se não mudasse suas políticas de imigração e energia, soando menos como um aliado e mais como um profeta do apocalipse nacionalista.

Seu apelo final por cooperação para um mundo mais seguro soou oco, pois estava condicionado a uma visão de mundo onde a "responsabilidade coletiva" parece ser sempre responsabilidade dos outros, enquanto a soberania americana permanece intocável.

Abismo entre dois mundos

Ouvir os dois discursos em sequência foi como observar dois planetas em órbitas distintas que, por um breve momento, se alinharam no mesmo ponto do espaço, apenas para revelar a incomensurável distância entre eles. A diferença não era de grau, mas de natureza.

Multilateralismo vs. Unilateralismo: Lula clamou por um mundo regido por leis e instituições fortalecidas. Trump defendeu um mundo onde a força e o interesse nacional dos Estados Unidos são a medida de todas as coisas.

Solidariedade vs. Isolamento: Lula falou em nome dos despossuídos, dos famintos, das nações endividadas. Sua perspectiva era a da humanidade compartilhada. Trump falou para a América, e apenas para ela, tratando o resto do mundo ora como ameaça, ora como mercado.

Humanismo vs. Transacionalismo: Para Lula, a dignidade, os direitos humanos e a justiça social são fins em si mesmos. Para Trump, a diplomacia é uma série de transações, de acordos onde é preciso "vencer", e os direitos humanos são, na melhor das hipóteses, uma moeda de troca.

Esperança vs. Nostalgia: O discurso de Lula, por mais crítico que fosse, era voltado para o futuro. Apresentava propostas, abria caminhos, oferecia uma visão de um mundo possível. O de Trump era um discurso de ressentimento, de nostalgia por uma era de domínio inconteste, uma tentativa de restaurar um passado que talvez nunca tenha existido como ele o descreve.

O grito que não pode ser ignorado

Ao final daquele dia histórico, enquanto os diplomatas se dispersavam e as luzes do grande salão se apagavam, uma certeza pairava no ar. A voz do Sul Global, por tanto tempo um sussurro nos corredores do poder, havia se transformado em um grito. Um grito articulado, fundamentado e inegavelmente moral.

Lula não falou como um pedinte, mas como um líder que exige o lugar que a história lhe reserva. Seu discurso foi uma bússola e uma advertência: a hegemonia não cederá seu espaço graciosamente. Ela se defenderá com as armas de sempre e com as novas armas dos algoritmos e da desinformação.

O contraste com o show de vaidades de Trump serviu apenas para sublinhar a encruzilhada em que o mundo se encontra. De um lado, o caminho da cooperação, da solidariedade e do reconhecimento de que os maiores desafios do nosso tempo – o clima, a pobreza, as pandemias – não respeitam fronteiras. Do outro, a trilha da fragmentação, dos muros, da desconfiança e da crença perigosa de que uma nação pode se salvar sozinha enquanto o resto do mundo arde.

Naquele dia, em Nova York, o Brasil não apenas cumpriu um ritual. Ele lembrou ao mundo o propósito esquecido das Nações Unidas. E provou que, mesmo em tempos de cinismo e desordem, a defesa apaixonada da humanidade ainda é a força mais revolucionária de todas. A voz do Sul foi ouvida. A questão, agora, é se o Norte tem a sabedoria para escutar.



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