Em guerra com o Palácio do Planalto, o STF (Supremo Tribunal Federal) tem adotado medidas heterodoxas e atropelado a PGR (Procuradoria-Geral da República) na tentativa de conter o avanço bolsonarista contra as instituições.
As decisões da corte ajudaram a reduzir a disseminação de fake news e de ataques à democracia nas redes sociais e também culminaram, por exemplo, no pedido de exoneração de Ricardo Salles, que conduziu uma agenda antiambiental no Ministério do Meio Ambiente
Por outro lado, especialistas temem que a atuação do Supremo com ações à margem das regras habituais gere um precedente perigoso à democracia. Um dos riscos apontado trata das consequências que podem provocar os embates com o procurador-geral, Augusto Aras.
Recentemente, o tribunal autorizou uma ação policial contra Salles sem ouvir a PGR e também driblou o pedido do órgão para arquivar o inquérito dos atos antidemocráticos, apesar de a jurisprudência determinar que esse tipo de manifestação da PGR deva ser atendido.
Especialistas reconhecem a necessidade de o Supremo adotar medidas duras contra o bolsonarismo, mas dizem que tergiversar com o devido processo legal, independentemente da finalidade que se busque, pode levar à criação de precedentes perigosos que, no futuro, venham a ser usados de maneira arbitrária pelo Judiciário em geral.
Além das decisões judiciais, a corte iniciou um movimento fora dos autos para barrar bandeiras do presidente.
Foi o caso, por exemplo, da implementação do chamado voto impresso. O chefe do Executivo tem feito campanha em prol da medida e conta com o apoio do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que tem grande influência sobre seus pares no Legislativo.
No entanto, ministros do Supremo articularam com 11 partidos um movimento contra a mudança na urna eletrônica e botaram em xeque a maioria que Bolsonaro tinha em relação ao tema.
Um dos primeiros indícios de que o STF estava inclinado a criar uma espécie de jurisprudência da crise para avançar em regras instituídas a fim de se contrapor a Bolsonaro foi em março de 2019, com a instauração do inquérito das fake news.
A investigação foi aberta de ofício, ou seja, sem requisição da Procuradoria, que, no sistema acusatório brasileiro, é a titular da ação penal.
A decisão individual do então presidente do STF, Dias Toffoli, causou estranheza porque, segundo a Constituição, o Judiciário só pode agir quando é provocado, e a responsável por pedir a abertura de apuração criminal deve ser a PGR.
Além disso, também foi alvo de críticas a designação do ministro Alexandre de Moraes como relator do caso, sem a realização de sorteio, como ocorre geralmente em investigações iniciadas no Supremo.
Inicialmente, o inquérito foi alvo de críticas internas na corte, com resistência de alguns integrantes em avalizar a medida. Prova disso é que Toffoli não quis levar, naquela ocasião, sua decisão para referendo do plenário.
Com o passar do tempo, o aumento da disseminação de fake news e ameaças a ministros por parte da militância bolsonarista mudou o humor do Supremo sobre o caso. Mais de um ano depois, o plenário, por 10 a 1, manteve a decisão de instaurar o inquérito das fake news.
Este caso também deixou claro como o Supremo serve de exemplo e influência nas decisões das demais instâncias do Judiciário. Isso porque, após os ministros confirmarem a possibilidade de abertura de inquérito de ofício, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) fez o mesmo.
Após o vazamento de mensagens de integrantes da Lava Jato com conversas que levantavam a suspeita de que a operação tentou investigar ministros do tribunal sem autorização judicial, o presidente da corte, ministro Humberto Martins, também determinou a abertura de um inquérito sem provocação da PGR.
A ministra Rosa Weber, do STF, porém, suspendeu a tramitação da investigação até que a Primeira Turma do Supremo tome uma decisão a respeito, o que ainda não tem data para ocorrer.
Outra estratégia adotada pelo STF que pode abrir precedente perigoso diz respeito ao uso recorrente da Lei de Segurança Nacional.
Após Moraes começar a usar a legislação para autorizar operações policiais contra aliados de Bolsonaro, passaram a surgir casos de investigação contra críticos do governo com base na mesma lei.
Muitas delas, inclusive, deflagradas por ordem do então ministro da Justiça, André Mendonça, favorito para ocupar a vaga de Marco Aurélio no Supremo.
No caso do STF, a Lei de Segurança Nacional serviu de base, por exemplo, para a prisão em flagrante do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ), que foi decretada por Moraes e, depois, referendada pelo plenário.
O parlamentar foi detido por ter feito ataques e ameaças a integrantes do STF em um vídeo. Neste caso, porém, foi alvo de críticas o fato de a caracterização do flagrante ter ocorrido por causa da publicação de uma gravação que fica disponível na internet.
O professor da Faculdade de Direito da USP Rafael Mafei compara a relação do Palácio do Planalto com o STF a uma partida de futebol em que a temperatura fica elevada e as faltas passam a ficar mais ríspidas.
"Nesses casos, só há dois desfechos possíveis: ou a parte contrária se intimida e se retrai ou aquilo descamba para briga generalizada e o jogo não termina."
"Eu acho muito difícil afirmar hoje qual vai ser o desfecho disso, se ao final será positivo ou negativo. Depende muito de quem vai vencer as eleições de 2022", afirma.
Mafei diz que até os ministros consideram que algumas decisões recentes da corte fogem da jurisprudência habitual do tribunal.
"Eu acho muito claro que o Supremo enxerga que tem de adotar medidas que os próprios ministros sabem que são heterodoxas. Isso principalmente em relação à PGR, porque o Ministério Público não foi concebido pela Constituição para ser ignorado ou escanteado."
Na avaliação dele, o maior risco seria uma reeleição de Bolsonaro e o "aumento da ocupação no sistema de Justiça por personagens alinhados ao atual governo".
"O problema é que esses atores poderão no futuro usar toda essa jurisprudência de exceção como parte de seu repertório: se valeu antes, por que não valeria agora?", diz.
Mafei afirma ainda que o risco de adotar decisões heterodoxas é muito maior para o Judiciário do que para o Executivo.
"A legitimidade do Bolsonaro vem das eleições e a do STF vem principalmente da certeza das pessoas de que os juízes são pessoas tecnicamente muito bem formadas e aplicam a lei com rigor."
"O ônus reputacional é maior para o Supremo porque sua autoridade decorre da percepção de que é um órgão técnico e rígido, enquanto para Bolsonaro o ônus de agir fora das quatro linhas da Constituição é muito menor", afirma.
Diego Werneck Arguelhes, professor de direito constitucional do Insper, afirma que seria importante que as decisões heterodoxas do Supremo fossem remetidas ao plenário.
"Independentemente do resultado das decisões, acho que é um perigo em si que elas fiquem pairando no ar com a pergunta: é a posição de um integrante ou é a posição do tribunal daqui para o futuro? Quais os limites dessa decisão, como o STF justifica isso?", afirma.
Arguelhes credita à omissão de Aras à frente da PGR a postura do STF de ter adotado medidas que antes eram raras.
Para ele, a situação deve levantar um debate mais profundo: "Quando há problemas dessa natureza, como a gente resolve: mudando as regras ou com o Supremo interpretando as regras vigentes de forma totalmente nova?"
"Não deveríamos ficar satisfeitos com soluções que o tribunal está criando agora, é oportunidade de pensar se elas funcionam para frente do ponto de vista institucional ou não", afirma.
Ele fala, no entanto, sobre o tamanho do risco que Bolsonaro representa às instituição e pondera: "A democracia consegue conviver com decisões judiciais que considero equivocadas, mas não consegue conviver com atores que estão diretamente atacando as bases institucionais e de confiança pública".
Procurado, o STF afirmou que "não comenta casos que estão sob análise da corte".