Nos últimos anos, um termo se popularizou no mundo inteiro para designar notícias falsas: fake News. A sua presença se tornou rotineira em jornais, redes sociais, grupos de whatsapp, dentre outros espaços que compõem a nossa esfera pública. Dessa forma, o termo saiu do âmbito especializado para se enraizar no senso comum, afinal, uma parcela significativa da sociedade comenta assuntos que envolvem ou já envolveram alguma fake.
No jornalismo, a expressão passou a ser tratada como desinformação. Tal movimento, parece ser feito para mostrar uma separação dos especialistas no assunto, os jornalistas, do senso comum. Porém, o termo não agrega em nada ao anterior, ambos representam a mesma coisa: uma informação que não tem lastro com o factual ou que distorce o fato.
No que diz respeito à teoria da informação, Gregory Bateson a considera como um evento que produz uma diferença, gerando certa alteração no fluxo de ações; em outra perspectiva, Ciro Marcondes Filho aponta que a informação só é possível a partir de um sinal intencional que conseguiu estabelecer o contato com um Outro, produzindo uma relação que gera uma adição em nosso conhecimento e imaginário. A partir dessas duas perspectivas podemos elencar uma premissa sobre a informação: ela é uma interação com algum conteúdo emitido de modo intencional que altera algo em nossa vida.
Com isso, podemos questionar como é possível a relação com um conteúdo sem lastro com o factual ser considerada desinformação. Tal ideia não remeteria à deslegitimação do receptor que entrou em contato com o conteúdo? Aprofundando a reflexão, a desinformação revela um paradoxo quando observada pelas lentes de algumas teorias da informação, mas por qual motivo?
Parece ser ilógico uma informação desinformar, afinal, ela pressupõe uma interação com um conteúdo intencional que altera o nosso fluxo de vivências que é independente do conteúdo da mensagem, portanto, uma relação com uma notícia falsa ainda é informação, pois o receptor vai julgar o conteúdo dentro do seu repertório e avaliar a veracidade da questão em uma circunstância que é incontrolável pelo emissor.
Nesse sentido, o senso comum parece estar à frente dos jornalistas, pois considerar o conteúdo como falso parece mais coeso do que julgar que a emissão não informa. Por outro lado, simplesmente considerar a notícia como falsa não avança muito sobre o problema e suas possíveis consequências.
O que há, em essência, em uma notícia falsa? Ela é produzida como uma emissão com certa intenção, mas qual? Podemos utilizar essas questões como filtro para iniciar uma análise sobre as notícias falsas com o objetivo de alcançar o seu sentido e a sua essência. Esse é o ponto, o sentido da notícia falsa é a questão que devemos ressaltar, pois ele pode evidenciar o que está por trás daqueles dados que distorcem o factual.
Em princípio, tais informações emergem de modo orquestrado em locais específicos, visando atingir públicos determinados a partir de boatos emitidos por indivíduos ou grupos que fazem parte do cotidiano das pessoas, geralmente por alguém que possui certo grau de confiança em um âmbito, como pastores, padres, líderes de bairro, políticos com contato direto com certos setores da sociedade e empregadores que coagem os seus funcionários com o intuito de conseguir influenciar a sua opinião.
Esses boatos são emissões pulverizadas, de caráter amplo, que almejam criar uma tensão para gerar um questionamento de crenças, mobilizando o espírito das pessoas, levando-as a agirem de modo mais passional, por medo ou paixão, e menos pela razão, no sentido de avaliar de modo amplo as condições da situação para produzir a sua interpretação.
Com esse tensionamento, os boatos se inserem na esfera pública e passam ganhar uma dimensão ampla. Um exemplo desse movimento é quando os grandes jornais apresentam uma notícia e mostram a sua falta de lastro com o factual. Quando isso acontece já é tarde, o boato se tornou um factóide, ganhou uma forma restrita e específica que está circulando em diversos setores da sociedade, de modo que, a crença sobre a sua veracidade depende muito mais das paixões dos indivíduos, do que da efetiva factualidade do que está circulando.
Quando uma notícia falsa ganha esse destaque, tornando-se uma pauta da esfera pública, ela passou de factóide para um acontecimento mediático, um fenômeno amplo que conecta diversos fatores em um eixo narrativo, obrigando os líderes políticos, a imprensa e, consequentemente, a população a discutirem o caso. Esse movimento mostra que tais ações são organizadas e que possuem um intuito preciso quando enunciadas.
De 2014 a 2018, por exemplo, ocorreu uma enxurrada de informações que poderiam afetar as crianças, despertando nos pais e responsáveis um medo de possíveis ataques no âmbito moral, religioso, educacional e físico a elas. Surgiram diversas notícias sobre inserção de ideologias de gênero em escolas, banheiros unissex, mamadeira ou chupeta no formato de órgão genital masculino, disseminação de discursos que poderiam influenciar a orientação sexual dos jovens e em 2018 explodiu a notícia sobre o “kit gay” que seria distribuído nas instituições de educação básica.
Todas essas notícias reverberam, por mensagens diferentes a intenção de produzir uma narrativa: as nossas crianças precisam ser protegidas da ameaça do mal e o bem vai ter que lutar contra as forças perversas. Tal campanha surgiu como um boato, criou um pânico moral, ampliou a sua repercussão, tornou-se um factóide e, posteriormente, configurou um acontecimento mediático que pautou a esfera pública durante o período, tanto que, foi amplamente utilizada como arma política pelo grupo que venceu as eleições em 2018 para desonrar a imagem de seus concorrentes e imputar certa malignidade em suas ações.
Desse modo, a notícia aparece como um dos movimentos que reverberaram na produção de um discurso amplo que visava objetivos específicos. Portanto, em nossa perspectiva é necessário avaliar como essas informações, aparentemente desconectadas ou não, produzem núcleos temáticos que, ao serem analisados em uma dimensão profunda, podem demonstrar um sentido. No caso das notícias de ataque às crianças, notamos a eminente campanha contra grupos políticos que, supostamente, ao influenciarem o público infantojuvenil estavam viabilizando um projeto de país que iria produzir um futuro perverso.
A disseminação dessa ideia criou as condições necessárias para que emergisse um líder que poderia ser uma referência moral de combate à emergência do mal, no caso, os partidos progressistas, viabilizando um movimento político e ideológico que conseguiu eleger um presidente da república, governadores, senadores e deputados em 2018. Ao criar uma narrativa de que o bem iria superar o mal a partir da força de um líder, que colocaria ordem no país o seu sentido se torna evidente: difamar certos grupos para enfraquecê-los na disputa eleitoral.
Em síntese, podemos notar que as notícias sem lastro com o factual não são apenas falsas, o seu conteúdo não se esgota na mensagem, pois em essência elas são campanhas difamatórias realizadas por uma maquinaria publicitária, com estratégias de curto, médio e longo prazo, visando aviltar a imagem de certas pessoas, instituições e grupos da sociedade para viabilizar um projeto de poder.