Há uma luz fria e precisa nos estúdios que parece ter o poder de despir a alma. Sob ela, as palavras ganham um peso diferente, um eco que reverbera para além das paredes isoladas acusticamente. Foi em uma tarde assim, no cenário do programa "Nossa República", que recebi a defensora pública Rosana Leite. Mais do que uma entrevistada, ela se revelou uma cartógrafa da dor e uma arquiteta da esperança, traçando com precisão o mapa de um território onde ser mulher se tornou um fator de risco.
Esta reportagem, parte do projeto AMOR SEM MEDO, nasce daquela conversa, um diálogo que transbordou o tempo da televisão para se tornar um documento necessário neste "Agosto Lilás". A voz de Rosana, serena, mas incisiva, é o fio condutor que nos guiará por um labirinto de estatísticas brutais, paradoxos institucionais e, acima de tudo, pela complexa e dolorosa teia do que significa ser mulher em Mato Grosso.
Rosana Leite não é uma figura que se impõe pelo volume, mas pela densidade. Coordenadora do Núcleo de Defesa da Mulher (NUDEM) da Defensoria Pública em Cuiabá e uma voz ativa em comissões nacionais de direitos humanos, ela carrega nos ombros e na fala o peso de incontáveis histórias de violência. Sua carreira é um testemunho vivo de que a defesa dos direitos das mulheres não é uma abstração jurídica, mas uma trincheira diária, travada nos corredores dos fóruns, nas salas de acolhimento e, como naquele dia, sob as luzes da mídia.
"É com muita tristeza", ela começou, e a frase pairou no ar, carregada de um cansaço que só anos de luta podem conferir. Falávamos do ranking nacional de feminicídios, uma lista da vergonha na qual Mato Grosso, pelo segundo ano consecutivo, ostenta a primeira posição. A pergunta que se impõe, quase como um soco no estômago, é: o que há de errado com Mato Grosso? O que adoece os homens de nossa terra a ponto de transformá-la em um campo minado para suas companheiras, mães e filhas?
Para Rosana, a resposta não está na superfície. "Eu costumo dizer que tem sido um risco para as mulheres estarem em Mato Grosso, porque aqui nós estamos sendo assassinadas por sermos mulheres". A clareza da afirmação é desarmante. Não se trata de fatalidade, de crime passional, de descontrole. Trata-se de um projeto, consciente ou não, de aniquilação baseado no gênero. "Os feminicídios acontecem em razão do ser mulher e menosprezo à condição de mulher", ela explica, desvendando a engrenagem do ódio que move essas tragédias, seja dentro do lar – o suposto porto seguro – ou fora dele.
A estatística, fria e implacável, confirma sua análise. Enquanto a média nacional de feminicídios é de 1,4 por cem mil mulheres, em Mato Grosso o número salta para 2,5. É quase o dobro. Um abismo. Cada ponto percentual representa uma vida ceifada, uma família destruída, uma criança órfã, uma comunidade ferida. A notícia, que ela recebe "mais uma vez com muita tristeza", é um atestado do fracasso coletivo, apesar dos esforços monumentais que ela mesma reconhece.
Paradoxo mato-grossense: vanguarda na lei, retaguarda no respeito
Aqui reside um dos paradoxos mais cruéis e reveladores de nossa realidade. Mato Grosso, o estado que lidera o ranking da morte, é também uma referência na aplicação da Lei Maria da Penha. Fomos os primeiros do Brasil a aplicá-la, criando um sistema de justiça com ilhas de excelência, envolvendo um Judiciário atento, um Ministério Público combativo e uma Defensoria Pública incansável. "Nós somos referência", afirma Rosana, e não há orgulho em sua voz, apenas a constatação de um quebra-cabeça cujas peças não se encaixam.
Se as instituições funcionam, por que as mulheres continuam morrendo? A defensora aponta para as fundações, para o alicerce cultural sobre o qual nossa sociedade foi erguida. "Eu penso que o que acontece é o machismo estrutural aqui dentro e a cultura do estupro, que acabam alimentando o patriarcalismo". Essa tríade nefasta – machismo, cultura do estupro e patriarcado – é o software invisível que roda por trás da violência explícita. É um sistema de crenças que ensina aos homens que seus corpos e desejos têm primazia, e às mulheres, que seus papéis são servir, ceder e silenciar.
Nesse ponto, a conversa se aprofunda. Seria o notório conservadorismo da sociedade mato-grossense, tão progressista no agronegócio e tão reacionária nos costumes, uma das raízes desse mal? "Ah, eu penso que sim", Rosana não hesita. Ela relata como, em suas interações em comitês nacionais, a imagem de Mato Grosso é a de um estado "extremamente conservador". Um conservadorismo que se entrincheirou ainda mais durante um período recente da política nacional, que ela descreve como uma "tentativa de desmantelar os direitos humanos no país". Hoje, vivemos os "resquícios de tudo isso".
O conservadorismo, nesse contexto, não é apenas uma preferência política ou moral. É um muro que impede o diálogo sobre temas tabus, mas essenciais. É o que mantém "assuntos não falados" trancados a sete chaves. E o principal desses assuntos, o esqueleto no armário de incontáveis lares, é a cultura do estupro dentro do casamento.
Para ilustrar, Rosana cita uma pesquisa chocante da psicóloga Valeska Zanullo, da UnB. Ao perguntar a mulheres casadas se já haviam mantido relações sexuais forçadas ou sem vontade com seus parceiros, cem por cento responderam que sim. O motivo? O temor de que eles "buscassem fora de casa". A frase revela um universo de submissão, de anulação do próprio desejo para manter uma paz precária, para cumprir um suposto dever conjugal que nada mais é do que a legitimação da violência sexual no espaço mais íntimo que existe. É a cultura do estupro em sua forma mais perversa, disfarçada de normalidade. E quando Sorriso, uma das capitais do nosso agronegócio, também lidera rankings nacionais de estupro, vemos que a lógica da posse sobre a terra e a lógica da posse sobre o corpo da mulher podem, tragicamente, beber da mesma fonte cultural.
Batalha pela mente e pelo coração: educação e comunicação
Se o diagnóstico é cultural, a cura passa, necessariamente, pela educação. E aqui, a Lei Maria da Penha, que Rosana classifica como uma "lei de vanguarda", mostra outra de suas facetas ainda não exploradas. "Até hoje não foi cumprida na integralidade", lamenta a defensora. A principal cláusula em aberto é a que prevê a inclusão, nos currículos escolares de todos os níveis, de conteúdos sobre a não violência contra a mulher.
A comparação que ela faz é simples e demolidora. "Meu filho pequeno aprende código de trânsito nas aulas, e ao chegarmos aos comércios, encontramos um código do consumidor". Aprendemos desde cedo a respeitar o sinal vermelho e os direitos do consumidor, mas falhamos em ensinar o básico: o respeito ao corpo, à vontade e à vida de uma mulher. Por que a Lei Maria da Penha não está estampada em cartazes, discutida nas salas de aula, presente no cotidiano como as outras normas que regem nossa vida em sociedade? A pergunta de Rosana é um chamado a "fechar o cerco no que diz respeito a esse enfrentamento".
Isso nos leva diretamente à questão da comunicação. Se os esforços das instituições não se consolidam em resultados, seria por uma falha em comunicar, em informar, em educar a população? A resposta de Rosana é complexa. Ela reconhece os esforços, como a busca da Defensoria Pública por criar um núcleo estadual de enfrentamento à violência, superando a estrutura atual do NUDEM, que ela coordena apenas em Cuiabá. Mas esbarra em limites estruturais: "Precisamos de mais defensores e defensoras, de mais servidores".
E há também a resistência política. A rede de enfrentamento, prevista no artigo oitavo da Lei Maria da Penha, não é uma realidade em todos os municípios. Pior: "há municípios que rechaçam qualquer iniciativa nesse sentido". A prova mais contundente dessa resistência veio da Assembleia Legislativa, que por duas vezes vetou a criação de um conselho estadual dos direitos da população LGBTQIAPN+. Para Rosana, essa recusa é um sintoma grave. "A Assembleia Legislativa, como foro político, deve ter uma visão mais ampla do que é certo e do que é errado, e não ser submissa a um pensamento majoritário".
Se todas não forem amparadas, nenhuma estará
É nesse ponto que o discurso de Rosana Leite atinge uma sofisticação e uma humanidade admiráveis, introduzindo o conceito de interseccionalidade não como um jargão acadêmico, mas como uma realidade palpável. A luta não pode ser monolítica. "Não podemos focar apenas nas mulheres brancas ou negras de forma isolada, porque o feminismo quando começou foi pensado por mulheres brancas que tinham condições de se expressar e estudar". Hoje, a tarefa é "pensar na multiplicidade de mulheres que somos".
A pergunta que ela lança é um desafio a qualquer política pública simplista: "Quando falamos de empoderamento, como empoderar uma mulher branca da mesma forma que uma negra? E como empoderar uma mulher negra da mesma forma que uma negra lésbica e pobre?". São camadas de opressão que se sobrepõem, criando vulnerabilidades distintas e exigindo olhares e estratégias diferentes. E ela vai além, incluindo as mulheres trans, "que sofrem em um grau ainda mais intenso". Ao citar a expectativa de vida de apenas 35 anos para essa população, ela escancara a forma mais letal de preconceito. A conclusão é uma máxima que deveria ser o norte de qualquer movimento por direitos: "Se todas não forem amparadas, nenhuma estará amparada".
Diante desse cenário, a comunicação pública se torna ainda mais crucial. Indago sobre a possibilidade de uma ação conjunta da Defensoria e do Ministério Público para cobrar dos poderes Executivo e Legislativo campanhas de comunicação mais educativas e menos autopromocionais. "Sim, é possível", ela confirma, lembrando da Câmara Setorial Temática na Assembleia, que ela mesma relatou, e que resultou na criação da Procuradoria da Mulher.
Contudo, ela faz uma ressalva importante, voltando o espelho para a minha própria profissão, o jornalismo. "A imprensa faz um trabalho maravilhoso, mas também precisamos pensar sobre como tratar do assunto, pois a forma como retratamos pode ter um efeito negativo". O exemplo que ela cita é cortante: a notícia que descreve um agressor como um homem "apaixonado". Essa romantização da violência, a perpetuação do mito do "crime passional", é um desserviço. "Quem ama não mata", ela sentencia, com a força da obviedade que precisa ser repetida incansavelmente. Aliás, esse slogan nasceu após o feminicídio da socialite Angela Diniz, nos estertores de 1976, e permanece até hoje como um símbolo da luta feminista na defesa das mulheres vítimas da violência.
A proposta de Rosana Leite é um convite à reflexão e à responsabilidade: que a Defensoria convoque os jornalistas para um diálogo, um seminário para discutir as melhores práticas na cobertura de um tema tão sensível, assim como já se faz com a pauta do suicídio. É um reconhecimento do poder da palavra, que pode tanto iluminar quanto obscurecer, tanto libertar quanto aprisionar a vítima em estereótipos cruéis.
Anatomia do abuso: quando o "amor" se torna jaula
A discussão sobre a linguagem nos leva ao cerne da questão: a confusão entre amor e posse, cuidado e controle, ciúme e abuso. Como desconstruir essa teia de enganos que aprisiona tantas mulheres em relacionamentos tóxicos? Rosana nos convida a observar os primeiros sinais. "Muitas vezes, o primeiro ato de violência acontece quando o celular da mulher é destruído durante uma discussão". O gesto é simbólico: quebra-se o elo dela com o mundo exterior, sua autonomia, sua voz. É o início do isolamento.
A mulher, ela insiste, precisa aprender a "diagnosticar se está vivendo uma situação abusiva". É preciso desnaturalizar o controle, a humilhação, a violência psicológica. O feminicídio raramente é um ato isolado, um raio em céu azul. Ele é o ápice de um ciclo, o último capítulo de uma história de violências escalonadas, muitas vezes "disfarçadas como 'aceitáveis'". A Lei Maria da Penha, em sua essência, foi criada para ser a ferramenta de interrupção desse ciclo. Mas, sem a mudança cultural, ela se torna um recurso de última hora, e não de prevenção.
E o que dizer dos homens, os agressores? Muitos, segundo Rosana, sequer reconhecem a criminalidade de seus atos. A violência é vista como um corretivo, um direito, uma prerrogativa masculina. Falar abertamente sobre isso é o único caminho para "desmantelar tais concepções".
Depois da tragédia: a luta pela memória e pelos órfãos
Quando o ciclo não é quebrado a tempo e o pior acontece, o trabalho da Defensoria ganha uma nova e sombria dimensão. O que o NUDEM faz em um caso de feminicídio? "Acompanhamos os casos desde o momento em que somos procurados", explica Rosana. A atuação vai muito além da defesa técnica. Eles se tornam guardiões da memória da vítima. Em um sistema que historicamente permite que a mulher assassinada seja julgada e culpabilizada no tribunal ("ela provocou", "ela traiu"), a Defensoria atua para "defender a memória da vítima e evitar que ela seja atacada no processo judicial".
Mas a tragédia do feminicídio deixa uma ferida que continua a sangrar: as crianças. Os órfãos do feminicídio são vítimas duplamente invisibilizadas. Perdem a mãe para a violência e, muitas vezes, o pai para a prisão, carregando um trauma de proporções inimagináveis. Rosana destaca a importância do encaminhamento dessas crianças para o apoio financeiro e, crucialmente, psicológico. "A saúde mental dessas crianças é fundamental e deve ser tratada com seriedade". É uma responsabilidade do Estado, mas que, na prática, ainda carece de um acompanhamento "mais estruturado e sistemático".
Ao final da nossa conversa, a sensação era a de ter mergulhado fundo em um oceano de complexidades. Pedi a Rosana que sintetizasse, em suas considerações finais, as prioridades. Sua resposta foi um retorno ao ponto mais fundamental de todos.
"Um dos grandes desafios que enfrentamos hoje é o respeito à vivência das mulheres. A sociedade ainda precisa aprender a nos respeitar como seres humanos". E, então, ela proferiu a frase que talvez seja a chave para toda a transformação: "Precisamos dar crédito à palavra das mulheres".
Em um mundo que exige provas, testemunhas e laudos para cada alegação de violência, ela nos lembra que as estatísticas já falam por si. A palavra da mulher, sua narrativa de dor e medo, deve ser o ponto de partida. "É crucial que mulheres reconheçam sua condição de vítimas e que a sociedade geral acredite nessa realidade".
Deixei o estúdio naquele dia com a voz de Rosana Leite ecoando em minha mente. Não era a voz da derrota, apesar da crueza dos fatos. Era a voz da resistência lúcida, da coragem que insiste, da esperança que se constrói na ação diária. A luta contra a violência de gênero em Mato Grosso, e no Brasil, é longa e árdua. Mas, enquanto houver vozes como a dela, dispostas a nomear o inominável e a defender o inalienável, haverá um caminho. A união, como ela disse, fará a diferença. A busca por um ambiente onde o amor não tenha medo, e onde ser mulher não seja um risco, continua. E ela é a tarefa de todos nós.